sábado, 7 de outubro de 2023

O sonho

 Acordei. Acordei e o sol ainda não raiva. A raiva de não conseguir dormir dominava-me. Porque razão não dormia mais? Reflectia enquanto olhava o tecto cravejado de espojos de mosquitos mortos pelas almofadas ensanguentadas, reflexo das noites quentes, tórridas de Verão.

Viro-me para o outro lado e adormeço - penso eu. Não, nada me faria voltar a dormir. O sonho estava cada vez mais a clarear na minha memória... ainda pairava, como uma pena de passarinho, que teimava a ficar suspensa, envolta em várias brisas que percorriam o quarto. O calor da cama quase que me sufocava, as almofadas ao toque pareciam que tinha sido lavadas, lavadas em suor, o cheiro nauseabundo do desejo, da vontade mais querer e não puder...

Pus-me a fazer um resumo do que tinha vivido no sonho e desde logo tive um arrepio, seguido de um estremecimento avassalador. Continuei...

 

"Procurava desesperadamente um lugar para passar a noite. Fosse onde fosse, desde que a minha pobre carteira o conseguisse pagar. Uma camarata, um quarto, algo... não ia mais uma vez ficar num vão de escada qualquer. A viagem tinha-me sugado muito do orçamento que tinha e numa localidade tão afastada das grandes cidades, é sempre mais complicado encontrar o quer que seja para passar a noite, ou pelo menos, de uma forma decente. Percorria a noite, que já se tornava fria, mas não terrivelmente fria, só uma brisa de norte incomodava os meus globos oculares e secava as minhas narinas. Uma rua, outra e aquela localidade iria terminar dentro em breve e nada, nem um sinal... ainda com algumas luzes ligadas, viam-se pessoas a acomodarem-se para o merecido descanso. Dobro uma esquina e no meio da rua uma mulher olhava o céu, de costas por mim, como se buscasse absolvição, ou até mesmo procurando ser salva. Fiquei a mirá-la ao longe. Balbuciava palavras sem nexo, de braços no ar, com uma lágrima nos olhos direito que lhe escorria pela face, conseguia-se ouvir:

- Porquê? Porquê? Porquê eu!?

Pensei que seria melhor dar a volta para trás, mas quando o tentava fazer, acidentalmente dei um pontapé numa garrafa que jazia fazia no chão.

- Quem vem lá?!? És tu?!? És?!? Voltaste? Diz-me que és tu!!!

Dizia estas palavras, só rodando a cabeça, mantendo toda a pose, em que a encontrara.

- Desculpe... - disse eu, com uma vez muito tremula e de certa forma, com receio. Não era uma imagem muito normal.

- Desculpe?! És tu ou não?! Tens nome?

Neste momento todo o meu corpo queria fugir dali, mas a minha alma mantinha a curiosidade e, por conseguinte, fiquei estático.

- Hipólito. - disse eu.

- Quem?! Eu não te conheço, pois não? Espero que não... senão isto pode-se tornar perigoso!

Cada vez mais a minha alma pendia para o mesmo desejo do corpo, sair dali a sete pés!

- Não minha Sra., não me conhece... - já com a voz em vibrato.

- Bem, então assuma-te aqui junto a mim. Eu não faço mal...

Ainda parado, tentei descontrair, visto que de facto não parecia assim tão grave como isso.

- Sente-se bem, minha Sra.?

- Senhora? Isso pergunto eu: sente-se bem?!? Senhora?!? - e com isto dá uma gargalhada quase macabra.

- Oh... desculpe, não a quis ofender, foi por uma questão de educação ...

- Não tem mal. - dizendo isto, abandonou a pose de braços erguidos e voltando-se para mim, exibia uma túnica semiaberta, não tendo qualquer tipo de roupa por baixo.

Estando eu a mais de 50 metros da mesma, achei estranho vislumbrem-se machas escuras na túnica. Diria mesmo que seria sangue.

- Venha, não se acanhe. Já percebi que não é destas paragens. De passagem? Para ficar?

Todo o semblante tinha mudado, de um desespero total, parecia nesse momento deter unicamente a curiosidade de me conhecer, ver, estar mais junto a ela. Anui ao seu chamamento e com passos de bebé, arrastei-me na sua direcção.

- Então, como disse mesmo que se chamava? Flávio?

- Não, Hipólito...

- Não ligue, tenho uma mania de que todos os estranhos se chamam Flávio. Será normal? Por certo que não, visto que também não o sou - dando uma risada forçada.

- Não sei explicar essas coisas da alma, mas pode ter a ver com algo passado, não sei...

- Não sabe? Como não sabe? Bem... tem ar que não saiba de facto. O que o traz por estas paragens?

- Estou há mais de 2 anos e meio a vaguear por esse mundo fora e é mais uma passagem. Bastante interessante por sinal.

- Como fala tão bem Português?

- Porque sou.

- Ah... muito bem. Então não conhecia o nosso país, será isso? Estranho... conhecer o mundo inteiro e nunca ter passado por um lugar por este... até bastante conhecido.

- Podemos dizer que estou na "volta".

- Ou seja, está a terminar a sua viagem, é isso?

- Podemos dizer que sim...

- E porque não continua, parece tão bem-adaptado...

- Na verdade não tenho resposta para essa pergunta, mas talvez sinto o chamamento de voltar a "casa".

- Tem casa? É de onde?

- Não tenho casa, nasci numa aldeia junto à serra da Malcata. Depois de ter ficado sem qualquer tipo de parentes, vendi tudo o que tinha e fui...

- Vejo que no meio da sua fuga, há aí um resquício de saudade.

- Nem sei bem, visto que se voltar à aldeia, não irei sentir feliz.

- Feliz?!? - e deu uma gargalhada sonora. - Feliz?! Oh meu caro viajante, inocente e talvez um romântico inveterado, isso não existe. São pressupostos edificados por pensadores e filósofos, que na verdade nem eles próprios conseguiram obter o resultado que tão apregoaram. É uma mentira, a felicidade não existe!

- Não? Como não? Quando rimos, quando sentimos amor...

- AMOR?! Isso é outra falácia! Outra ideia estúpida que só lembra mesmo aos escritores e poetas! Amor... ai o amor e o amor... o louco, cego amor, o que nos faz sentir com o coração a mil, o que nos faz suar, o que nos faz chora, quando queremos rir e quando queremos rir, só sentimos amor e amor faz-nos rir de chorar. Não o quero voltar a desiludir, mas... sim, não existe.

- Porque diz isso? Tem a certeza disso?

- Certezas?! Oh não! Mas onde vive o Sr.?! Como vive? Alienado de tudo, consegue sentir isso tudo?? Amor, ter certezas e ser feliz?! Que homem mais enganado nunca tinha visto!

- Fala no entanto com certezas e de uma forma apaixonada... - fez um silêncio. Olho-o nos olhos, fechou a túnica e disse:

- De certeza não quer entrar, ou vai ficar aí a olhar para mim??

 

Casou com ela e viveram juntos para sempre, na total infelicidade, da incerteza, que o amor seria a última coisa que iram sentir um pelo outro. No entanto, um sem o outro, nunca mais conseguiram viver.”

Eram já oito e meia e não consigo sair da cama, o sono apoderou-se de mim e este maldito corte que tenho no dedo, que me magoa e não me deixa descansar… só mesmo este sonho para ter podido descansar um pouco… ainda tenho de entender porque o esfaqueei…

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