sábado, 11 de novembro de 2023

Amnésia forçada

 Debatia-me com uma incrível sensação de mau estar. Na verdade, não sabia se seria das infinitas garrafas de cerveja que tinha bebido, se da enorme vontade e terminar a relação, mas que me sentia mal, sim. Pensei que seria melhor esperar pela manhã, visto que entre copos e berros de desespero, tudo tinha perdido o sentido e o senso.

Acordei com uma enorme sensação de que algo estaria errado, devido a algum acontecimento gravíssimo. Sabia que me tinha deitado, pois coloquei o despertador para ir trabalhar no dia seguinte, mas a dormência terrível que estava envolvido, por questões que se prendem com o facto que os humanos não são tolerantes ao álcool, fez-me tremer. A cama estava fazia, não encontrei qualquer tipo de barulho em casa, nem o cão que costumava pairar incerto às 6 e meia da manhã, se ouvia. Só o ruído de um sino, o da igreja, que batia neste momento as 7 horas. (Porque razão conto sempre as batidas do sino?) Arrastei-me ao quarto de banho, visto que questões fisiológicas eram mais gravosas que o facto de estar, ou não sozinho e o que se poderia ter passado na noite/tarde anterior. Liberto dos apertos, todo banhado e perfumado, visto-me e de seguida vasculhei cada metro, cada centímetro da casa e nada, não havia vivalma. Assustado, preocupado, mas por outro lado sentido o dever de estar no trabalho a horas, fez com que tudo passasse só de um: "Amor, estás bêbado, vamos para casa da minha mãe!" Algo que de facto já tinha acontecido pelo menos umas 10 vezes.

Saí e o meu carro não estava lá, as chaves estavam na minha mão. O que ainda se tornou mais estranho. Não pensando duas vezes, ligo o meu telemóvel e deparo-me com outra situação insólita. Não era o meu telemóvel, sendo que por mais que tentasse, não sabia de quem seria. Confuso e sem tempo para pensar, resolvi ir de transportes. Pelo caminho tentei refazer a linha do tempo, mas sem efeito, pois parei de conseguir ter a noção do que seria o tempo, ao décimo shot de vodca. No trabalho todos parecem confusos e de certa forma surpresos e outros assustados, mas poderia ser só da minha confusa sensação. Comprimento todos os que sabia que iria ter resposta e depois de ver se tinha algum recado, sendo que tinha, ignoro e dirijo-me para a copa, onde um café nojento me esperava. Lá estava ela, a minha chefe. Ainda tentei dar meia-volta, mas não fui a tempo: "Flávio? Precisamos falar..." O tom grave trouxe-me memórias horríveis de momento trágicos, que não queria recordar. Passado violento, que terrores e tremores sem sentido, que me afectam desde que me lembro de mim. Pensei o pior. Perguntei: "Diz-me que não matei a minha família..."

 

 

Passado dois meses, só queria estar sempre na solitária, onde ninguém me poderia bater, amassar, espezinhar e mal tratar. Ninguém tem, ou sabe, o quão é terrível não ter conhecimento de nada, mesmo que nos fossem mostradas fotos de actos avassaladores, perpetrados por nós. Eu não tinha como me lembrar, a minha condição médica não me permitia entender, lembrar, ou se quer ter conhecimento do que se tinha passado. Também não iria explicar a um conjunto de pessoas com pouca e nenhuma formação, que sofrendo (consistente) de uma condição fisiológica, que me impedia ter racionalidade, após a entrada na minha corrente sanguínea de factores que deturpam efectivamente qualquer realidade. Se sabia? Sim, sabia que não podia, que todo o meu corpo se tornava perigoso para com outras pessoas, após a entrada fria de substâncias desse calibre.

 

No julgamento, não fui poupado e mesmo depois de ter conseguido alguém que me conseguisse entender, mais ninguém o fez, pois, o resultado foi devastador. Teria de arcar com as consequências terríveis. Toda a minha razão de ser tinha-se consumido, finado e só restava uma solução, terminar com o que tinha causado tremenda acção. Sem pensar duas vezes e já em solitária, resolvi terminar com aquilo tudo.

 

Parei e pensei: mas um jarro chinês falso é assim tão importante? Pedi o divórcio, mudei-me para a Austrália e tornei-me o primeiro cultivador de cães selvagens.

 

PS: continuo sem saber quem levou o meu carro e de quem era o telemóvel. Por outro lado, o médico já me alterou a medicação...