sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Há dias assim

Descia agora no elevador, forrado a veludo vermelho e amarelo. Dum lado, um espelho enorme preenchia a parede toda e do outro botões muito grandes assinalavam os andares. A toda a volta, excepto na porta, no meio das paredes, por altura da cintura, um varão dourado, flutuava a toda à volta, visto que não estava assente em lugar algum. O chão negro como a noite, mais parecia que não tinha fundo. Senti que descia com uma enorme velocidade. Tentei pará-lo. Olhei para os enormes botões. O sinal de paragem era uma enorme alavanca, que se escondia dentro da parede lateral, como se que estivesse embutida. O número 5 piscava, como se tratasse duma emergência, enquanto os outros, tinha pequenas bocas e que cantavam desafinados o hino da alegria. De certa forma não sabia para onde ia, visto que não me lembro como entrei. Ao tentar lembrar-me, olhei para cima e vi que o dito elevador não tinha cobertura e que se viam perfeitamente as estrelas, como se estivesse no espaço. Parou no 5º andar e as portas abriram-se. Uma luz ofuscante e um barulho semelhante a uma bola de ténis a saltitar, eram a única coisa que se ouviam. Ouvia-se também ao fundo uma voz, mas não se entendia o que dizia. Hesitei, tive medo e não sai. Por entre a luz forte, senti um puxão, parecia vislumbrar-se um braço, com uma mão, que me agarrava, me puxava para fora, mas não sabia de onde vinha a força, visto que sentia o puxão, mas a mão não me tocava. A voz agora era nítida e dizia primeiro bem baixo: “Tens de sair… tens de sair….” Era cada vez mais intensa, até que aos gritos me dizia, para sair:
- “SAI!!! SAI!!!”.
Acordei com a minha mulher a chamar-me para sair da cama. Estes sonhos dão-me vertigens e sede. A minha mulher, de olhos vermelhos, já vestida, pronta para sair, dizia para eu sair da cama e enquanto saía, resmungava que mais uma vez tinha sido ela que tinha levado o cão à rua, etc, etc…
- Tem um dia simpático amor. – Disse eu.
Nem respondeu, fechou a porta com toda a força e saiu. Voltei-me para o outro lado e voltei a dormir.
Depois de muitas voltas na cama, sem conseguir voltar a pregar olho, levantei-me. Uma sensação estranha envolvia-me. Uma sensação de que me tinha esquecido de fazer alguma coisa no dia anterior. Não sabia o que era, mas sabia que essa sensação me perseguia, como um leão persegue a sua presa. Levantei-me de testa franzida, com a ideia na minha cabeça. Como todos os dias, fui até à cozinha e abri o frigorifico. Olhei lá para dentro e nada do que lá estava fazia sentido, era como que se aquele frigorífico não fosse o meu, como que as coisas que lá estavam dentro não fossem minhas. Tive um estremecimento e fechei a porta assustado. Olhei em volta e tudo apontava para que estivesse na minha casa. Enchi-me de coragem e voltei a abrir o frigorífico. Tudo tinha ocupado o seu devido lugar. Desta feita tinha sido ainda mais estranho e repeti a operação mais umas quantas vezes, mas nunca me aparecera como da primeira vez. Por fim, abri, tirei o sumo de ananás e bebi o pacote quase todo. De seguida o café da manhã e uma ida prolongada à casa de banho, para ler as últimas notícias e ficar mais quinze minutos com as pernas dormentes depois de me levantar. No fundo da minha mente a sensação persistia. Do que é que eu me teria esquecido de fazer?
Tomei banho, vesti-me, arranjei-me todo e saí.
No meu automóvel, a caminho do trabalho, no trânsito infernal da cidade, ouvia o meu grupo favorito. Estava tão alto que até eu próprio tinha de por tampões nos ouvidos para não ferir os tímpanos. Gosto da sensação de ouvir música ao vivo, num estádio, ou num local onde toquem a música bem alta. Tão alta que tinha de estar de boca aberta para aliviar a pressão criada no peito. Parecia que a caixa torácica ia explodir. Que sensação agradável! Sorri! Algo que adoro, isso e sentir os pés molhados. O meu psicólogo não consegue entender porquê, mas mesmo com regressões e tudo e mais alguma coisa, ele entende, nem consegue entender, ou se quer dar-me uma pista para o porquê. Acho que tenho de mudar de psicólogo.
Estava já muito próximo do meu trabalho, a avenida que ladeia o estacionamento onde por norma eu estaciono o carro, estava fechada. Uma manifestação anti-qualquer coisa. Abri o vidro para falar com o agente da autoridade que estava a direccionar o trânsito, mas não baixei a música, visto que como estava com os tampões, não me apercebi que estava assim tão alta. O agente não achou muita piada e mandou-me encostar. Ainda pensei que seria por causa de alguma irregularidade que teria cometido ao chegar junto dele, mas não, era mesmo a música. Discurso de agente da autoridade:
- Bom dia Sr. condutor. Os seus documentos e os documentos da viatura. – fazendo continência.
Nota de rodapé: Será um truque para quebrar o gelo da primeira conversa? Imaginem um agente no engate na discoteca: “Então, Sra. condutora, mostre-me lá os documentos da viatura e já agora, fofa, os seus.” E na frase a seguir: “Vou ter de a autuar!” - com ar malandreco.
Baixei a música, tirei os tampões dos ouvidos, retirei os documentos da carteira e passeio-os suavemente para as mãos tronchudas do agente. De documentos na mão, deu uma volta ao carro, verificou tudo e assomou-se à minha janela, dizendo a típica segunda frase:
- Sr. condutor, vou ter de o autuar.
Quando estão chateados de ali estar, porque lhes mandaram fazer aquele serviço e obrigados, é escusado dizer seja o que for para os demover. Olhei em volta em busca duma salvação e no crachá vi a salvação. O nome, mas em especial o apelido. Era o igual ao meu. Julgo que ele também já tinha dado conta dessa ocorrência, quando verificou os meus documentos, mas não quis dar parte fraca. Balbuciou as palavras da praxe, para que não desse azo a conversas fora do círculo condutor-agente agente-condutor. Há muitas pessoas com o mesmo apelido e que não têm parentesco, todos sabemos disso, mas Salpicos por certo que haverão poucos. Olhei-o nos olhos e reconheci-o. Era o meu primo das férias de Verão! Já não o via há pelo menos dez anos, mas os olhos e a expressão de zangado, nunca as deixaria de ter. Sim, era o Fulgêncio! Meu grande companheiro de pesca! Não consegui abafar:
- Fulgêncio! Estás bom!?
- Desculpe… - Com ar de admirado.
Fê-lo tão bem que quase acreditei que não era, mas no final do ar de espanto, senti um pequeno sorriso. Estava safo! Era ele mesmo, o meu querido primo. Disse logo para entrar no carro e irmos tomar um copo, ou um café, visto que estava de serviço. Primeiro disse que não podia, mas depois chamou um colega qualquer, duma patente inferior e dizendo que precisava de me levar à esquadra. E lá fomos nós. Estava tão contente! Ele ainda meio encavacado, esboçava um pequeno sorriso, mas nada de muito largo. Achei aquela reacção meio estranha, mas como estava fardado e porque estava no meu carro, achei que estava contido por causa da situação. Rápido percebi que não seria por essa razão. Mandou-me encostar e olhou-me nos olhos. Apercebi-me que algo não estava bem e como uma epifania, lembrei-me do que me esquecera. Como pode ser? Tudo tem de ter uma razão de ser. Mas o facto de o ter encontrado daquela forma, não fora um acaso, não fora por obra do destino, fora sim porque ele me perseguia. Como me pude esquecer? Talvez por parecer tão absurdo, tinha feito a máxima força para me esquecer. Quando me vi na situação e vi os olhos dele, não deixei de pensar na minha mulher, em todos os dias bons que tive na minha vida, num resumo de condenado à morte, tive um arrepio. Ele continuava ali, a olhar para mim, parado e com a mão na pistola. Lágrimas surdas começaram a escorrer-me pela face. Ao final de algum tempo naquele impasse, soltou uma palavra da sua boca:
- Pelos vistos esqueceste-te do que tínhamos combinado.
Eu não consegui responder, só as lágrimas falavam, o desespero espalhado na minha cara dizia tudo. Voltou de novo ao tema:
- Esqueceste-te, não foi? Pois… mas eu não. Que Deus te dê paz à tal alma.
Dizendo isto, puxou da arma, engatilho-a e quando se preparava para disparar, consegui dizer:
- Primo…
Tarde demais, pois disparou sem pestanejar e saiu do carro.


Caso se lembrem do que eu me tinha esquecido, digam-me, que eu depois de levar com o balázio, esqueci-me.

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