quinta-feira, 18 de julho de 2024

A Prima (texto corrigido)

O mote.

(...) Depois os que riam passaram a chamar-nos namorados. Às vezes atiravam-nos uma pedra que nunca acertava e fugiam. Começámos a sair da escola durante o intervalo grande, que era de trinta minutos, acho eu, e desfrutávamos o facto de àquela hora o baloiço do parque estar sempre livre. Às vezes a meia hora passava a uma, ou mais, até que a professora chamou os nossos pais por mau comportamento. O que é que eu andava a fazer com a Helena, perguntou-me a minha mãe à noite. Andamos de baloiço, respondi. (...) Lembras-te Helena? Helena? Não me ouves? Tinha que ser nesta noite fria, que

 

O texto:

 

A Prima

 

 

A família

Os ossos doem-me, o frio, a humidade, esta maldita, mas bem vivida velhice, que me atormenta à anos. Mas graças a Deus tenho alguém com quem posso compartilhar estes dias de hoje, porque houve dias em que nada tinha, ninguém, só o vazio das paredes, o som do vento, que fustigava as janelas do piso de cima. A do quarto do André e da pequena, que há muito estava partida, era o que mais me arrepiava. Tenho que ir buscar mais lenha, comentei. O fogo brando, quase sumido, que quase não aquece, na lareira monstruosa, as sombras na parede, que mais fazem lembrar os mantos negros, como abutres, que esvoaçam pela sala, na noite. Levantei-me, ao lado da lareira um cesto de verga, envelhecido pelo fumo e pelo calor, estava meio de lanha. Retirei dois troncos grossos e coloquei-os na lareira. Peguei no livro que lia, já há duas semanas. Aquela passagem em particular fez-me lembrar a minha infância. Os dias em que corria pela casa fora com a minha prima, na altura má como as cobras, matreira, dela nada se podia prever, mas o amor que sentia por ela, superava qualquer coisa. Um dia de inverno, como este, andávamos a correr pela sala numa gritaria pegada. A minha prima tinha-me tirado do meu quarto um pequeno cavalinho de pau, que o meu tio tinha feito, com a sua navalha, sempre impecavelmente afiada, mas com todo o carinho. E lá andava ela com o cavalinho na mão a, a troçar de mim e quando passava por esta lareira, fingia que atirava o cavalinho. Eu em pânico, gritava e chorava. A maldade era tanta que nem um leve, suave, materno, doce, tão doce, parem com isso, da minha querida mãe, a fazia parar. Eu nunca consegui compreender porquê. O que a levou a atirar o cavalinho para a lareira. Tenho cá as minhas suspeitas, mas é muito difícil compreender. Com tamanha gritaria, e choradeira, foi inevitável que o meu bem-dito papa não ouvisse. Austero, severo, com voz de trovão, as mãos do tamanho de panelas de sopa, os olhos azuis, mais azuis que o céu, o bigode grisalho, de pontas reviradas para baixo. Era muito alto, tão alto, que não se conseguia ver a alma, mas era tão doce, tão amigo, afável, mas tão cruelmente justo, mesmo muito justo! Ao chegar à sala, soltou um, gostava de saber o que me perturbou o sono? Eu não consegui soltar uma palavra que fosse, tudo se gelou dentro de mim. O cavalinho deixou imediatamente de existir, a única coisa que me ocorreu foi o destino da minha pobre prima, mas nem uma palavra, nada. Não conseguia salvá-la. Quando me lembrava do que ela tinha feito, o ódio percorria o meu coração. O que se passou, Júlia? Perguntou à minha mãe. Nada Sr., nada se passou. Não achei justo. Mas seria melhor assim, que aplicar a justiça do meu papa sobre a minha pobre prima. Ela, que era sempre muito irrequieta, sempre que o meu papa estava por perto, tornava-se na moça mais sossegada, angélica, mais doce que alguma vez havia existido. Eu que padecia da mesma justiça do meu pai, suportei mal todo aquele clima obscuro de traição. Ele, que estava ainda de maus modos, sentou-se no seu grande cadeirão, e pôs-se a olhar. Júlia, o seu filho está com um olhar muito rancoroso, algo se passou. Seria melhor contar-me o que se passou. A minha mãe insistia, Sr. nada se passou. Eu nada podia fazer. O meu papa era contra a covardia que assolava a maioria das crianças e sabendo disso, insurgi-me. Prima, gostava que visses brincar comigo para o meu quarto. Não me apercebi do que tinha dito. O meu pai não quando estava a sala não queria que ninguém a abandonasse enquanto ele lá estivesse. Fiquei muito nervoso. A enorme e volumosa cabeça, voltou-se na minha direcção e de um só sopro, trovejou: O menino sabe que não pode fazer isso, não sabe? Mais uma vez o meu corpo gelava, era como que todo o meu sangue quente nas minhas veias me abandonasse e no seu lugar corriam torrentes de gelo. Sim Sr.. Respondia com o coração na mão à espera da facada fatal. A minha adorada prima, que de feia sempre teve muito pouco, olhou para mim e da sua boca, linda, saiu a língua vermelha como uma cereja. O ódio foi superior ao meu pai. Nada me podia travar naquele instante. Saltei de um só impulso para cima dela e bati-lhe tanto com as mãos fechadas, nem as mãos vigorosas do meu papa conseguiram me arrancar. Estava louco de raiva! A muito custo conseguiu separa-nos. A mãe que sempre a vira com a calma de uma leve brisa, salta do enorme sofá, deixando cair a sua primorosa renda, tentando também nos separar. Eu fiquei nas mãos do meu pai, ainda esperneava. Pela cara da minha prima escorria um fino fio de sangue, que lhe vinha cabeça. A minha querida mãe, em pânico, olhou-me nos olhos e perfurou-me! O meu pai, de imediato afastou-me dali, levou-me para o quarto e trancou-me a sete chaves. Fiquei quatro semanas a pão e água, de janela fechada, tapada por fora. O caseiro, o Sr. Antunes, enquanto pregava as tábuas na janela, escorriam-lhe lagrimas grossas, pela face seca do pó do campo, enquanto eu ficava ali encarcerado. Tinha uma vela que tinha que racionar, pois era a única, para me fazer companhia. Todos os meus pensamentos estavam voltados num só sentido, a vingança. As quatro semanas transformaram-se em anos, num colégio interno. Cresci rancoroso, fechado, triste, com pensamentos pecaminosos, sem vida interior. Nunca mais vi a minha amada mãe. E ela, a prima, linda, que não me saia da cabeça... Quando soube da morte da minha mãezinha, abateu-se uma tristeza e uma dor tão grande, que a única esperança tornou-se obvia, tinha que me vingar.

 

A cidade

Com 19 anos, acabei todos os estudos, era agora médico. Não tinha um único amigo. A igreja ia-me dando algum apoio, mas até aquele dia nada nem ninguém sabia o que me trouxera aquele colégio. A única coisa que sabiam no colégio, era da existência de uma família que nada dizia, nem uma visita, nem uma carta, só um mensageiro com a morte da minha mãe e a mensalidade. Sai para a cidade com os meus 20 anos. O Padre Zacarias aconselhou-me um cirurgião muito famoso. Fiz-me ao caminho. Tinha crédito para um dia, não mais. Ao chegar à grande cidade, pressenti algo nefasto, nada iria ser como até ai, iria ser bem pior. A agitação, o barulho, os olhares, os risos, as falas, os trajes, o cheiro, tudo era novo e distinto, nada igual ao que alguma vez tinha sentido. Mas além disso, senti um frio de medo a percorrer as costas. Bem que o Padre me avisou. Tal como o Padre me ensinara, perguntei a uma velhota que vendia fruta, como fazer chegar à morada do famoso cirurgião. Não sei quanto tempo andei a pé, mas perguntei indicações a sete velhotas que vendiam alimentos na rua. No final bati à porta, exausto. Ninguém... Esperei quatro dias. Ao final dos mesmo quatro dias, apareceu uma senhora de meia-idade, que com muita ternura me perguntou se eu estava perdido. Expliquei-lhe a razão pela qual estava ali e prontamente se ocupou de mim. Convidou-me a entrar, esperar pelo médico que tinha saído por uns dias. Estava a morrer de fome. Só trazia uma mala e a roupa que tinha comigo e umas coroas para dormir, que guardei. Em quatro dias, tinha comido quatro maçãs. Estava mesmo com fome. O médico chegou passados alguns minutos. Muito elegante, muito aprumado, de chapéu alto, bengala, de cara muito lavada, sem uma única ruga, como se a pele fosse de cetim, olhos pequenos. Prontamente a senhora justificou a minha presença. O médico ficou muito impressionado, tão novo e já médico?! Expliquei em poucas palavras o meu passado e o médico, compreendeu. Esticou a sua mão, muito macia e fria. Dr. Ernesto de Vasques, às suas ordens. Eu nem sabia o que dizer, estendi a minha mão e apresentei-me, Afonso Biscaia, um seu criado. Foi a primeira vez em 15 anos que disse o meu nome a um estranho. De certa forma não me suou bem, nem a mim nem ao Dr. Ernesto. Biscaia? De onde? Perguntou de sobrolho levantado. De Vandins de Cima, Sr. Dr., disse eu a medo. Não acredito! E dizendo isto o Dr. dá um passo a trás, com o olhar raiado de espanto. Tens a certeza? Perguntou ainda incrédulo. Sim Sr. Dr., tenho. Eu não compreendia o que se passava. Pega no meu braço com toda a força e atira comigo para fora da sua casa, com a mala que trazia e aconselha-me a sair da cidade o mais rápido possível. Algo se tinha passado e era com a minha família, algo de muito grave. Não podia ser mero acaso, o Dr. Ernesto não podia conhecer a minha família, seria um verdadeiro acaso. Peguei na mala. Estava desesperado. Não sabia para onde ir. Já era noite. Pernoitei num vão de escada ali perto. De manhã resolvi procurar algo para fazer. Se ia ficar na cidade, teria de arranjar sustento, pelo menos até decidir o que fazer. Procurei durante dois dias trabalho, ninguém me queria, era demasiado franzino para fazer trabalhos pesados e eram os únicos que encontrava. Por fim consegui um emprego numa fábrica de peles. Trabalhava-se do nascer ao por do sol, sete dias por semana e dormia-se dentro da fábrica, juntamente com mais centenas de operários. Durante anos a fio trabalhei, naquela fábrica. Via muito poucas vezes a luz do dia. Mais uma vez, o isolamento era profundo, os pensamentos cada vez mais densos. Nada nem ninguém sabia quem eu era. De três em três meses tinha folga. Um dia, numa dessas folgas, sai e nunca mais voltei. Dentro da fábrica tinha-me informado como teria que fazer para chegar à estação de comboios. Assim fiz, com o pouco dinheiro que me pagavam, juntei o suficiente, para sair daquele inferno e meti-me no comboio, ruma a casa.

 

A casa

Na viagem, pensava em várias coisas. A primeira, e a mais antiga, a vingança, a segunda, era saber o que se tinha passado, para aquele Médico ter aquela reacção e a terceira era se o meu papa ainda estava vivo. A viagem demorou cerca de seis dias. Estava realmente muito longe. Depois de um dia no comboio, dois dias de diligência, mais dois a pé e um pelo meio para descansar. Quanto mais me aproximava da região, maior era o aperto no coração, não sabia se estava a fazer bem. Por um lado só pensava numa coisa, o reencontro com o passado e a saudade, por outro lado o rancor, o ódio. Estava agora com 29 anos, deformado, muito envelhecido, pálido. No entanto quando mais me aproximava, sentia-me a rejuvenescer. Lembrava-me dos momentos que passei com todos, a mãezinha, o papa e até mesmo a prima, a pobre prima. Órfã. Era filha do irmão do meu pai, que morreu juntamente com a minha tia, num incêndio. As circunstâncias do incêndio sempre foram muito dúbias, mas não seria muito difícil adivinhar o que se tinha passado. Comecei a lembrar-me dos tempos da escola primária. A minha prima, Helena, (há quanto tempo não digo este nome...?), que andava na mesma classe que eu, gostava muito de andar de baloiço, ela e eu. Ali ficávamos, horas. O intervalo, que era de apenas meia hora, transformava-se, no entanto para nós parecia só dois minutos. Andávamos sempre juntos, até havia quem dizia que éramos namorados, mas isso não podia ser! Mas era de facto e, por isso por vezes, só para nos chatear atiravam-nos uma pedra ou outra, mas não nos acertavam. Helena ficava muito irritada com isso, corria atrás deles e batia-lhes, com tudo o que tinha à mão. Por vezes era eu que tinha de acatar com a culpas, pois uma menina não tem comportamentos daqueles. O comportamento na escola, levou a chamar a mãezinha, que perguntou nesse dia à noite, longe dos ouvidos do papa, o que estava eu a afazer com a Helena. Eu com um brilho nos olhos, respondia, a andar de baloiço com a Helena. A mãezinha abraçava-me e pedia para ter mais cuidado, se o papa soubesse seria muito grave. No meio destes pensamentos lamechas, vinham as ondas de ódio. Um simples episódio tinha transformado a minha vida, repleta de prosperidade, como podia ter acontecido, pensava eu lavado em lágrimas. E o que teria acontecido a Helena, matreira como era e cínica, pensei que devia ter feito as coisas de forma a ser perfilhada pelos meus pais. Ai que dor! Continuei o meu caminho, estava quase a chegar, já sentia o cheiro. Ao longe, por entre os cedros altos, avisto as chaminés do casarão, imponentes como sempre. Parei, achei aquilo absurdo. O que estava eu a afazer ali? Não tinha sentido. Passaram muitos anos, eu para esta gente estaria morto, mesmo se não estivesse, devia estar. E eu também devia enterrar este meu passado horrendo e sair daqui. Com este pensamento voltei para trás. Mal iniciei a minha caminhada para trás, parei de novo. O ódio apoderou-se dos meus punhos, cerrei-os e fiz-me ao caminho, tinha que me vingar! O casarão estava com muito bom aspecto, todo pintado de branco, de um branco angelical. O jardim estava impecável, cheio de cores do arco-íris, lindo. Apetecia morrer naquele lugar, seria uma benção. Limpei as vestes sujas de pó, arranjei o cabelo, o pouco que tinha, limpei um pouco os sapatos, cheios de lama e peguei na grande maçaneta da porta principal. Como tudo aquilo me parecia bem mais pequeno, quase normal. Enquanto esperava que alguém abrisse a porta, olhei mais uma vez o jardim e como estava bonito. Acho que nunca tinha reparado, ou será que me tinha esquecido? Envolto nestes pensamentos, sinto a porta a abrir-se. Voltei-me e lá estava, como imaginei, o Sr. Antunes, o fiei caseiro, não me reconheceu. Não estamos a dar nada, nem se quer temos trabalho para si, vá-se embora! Fiquei calado. Olhei nos olhos dele. O Sr. Antunes teve um estremecimento e tombou um passo a trás. Menino Afonso...? Ficou sem qualquer tipo de expressão, nada, estava gelado, petrificado. Não é possível, era as únicas palavras que dizia. Posso entrar Antunes? Perguntei com um leve sorriso nos lábios, o primeiro dos últimos 22 anos. Não sei, respondeu. O que se passara? Primeiro o Médico, depois isto? O que se tinha passado? Fiquei transtornado. O menino não sabe? Perguntou-me o Sr. Antunes. Não sei de nada Antunes, nada! Desde que cheguei à cidade que tudo se tornou muito estranho, sem explicação. Eu não mereço isto! Diga-me Antunes, o que foi? O que se passou? Estava cada vez mais desesperado, confuso, sem rumo, tinha chegado ali com tanto esforço, com tanta dor acumulada, com todo o rancor do mundo, com o ódio que me consumia o coração e alguém está ali especado na porta da minha casa, que me faz perguntas, que me transtorna ainda mais, que me faz preocupar com esta gente, que me abandonou, que me deixou, como um reles cão da rua. Isto não podia ser justo, isto era demais. Antunes de uma vez por todas diga-me o que se passou. O seu pai assassinou uma pessoa, por causa da menina Helena e neste momento está preso. Não me espantei, tudo seria possível, vindo da prima. Já nada tinha importância-

 

A prima

E porque razão não me deixa entrar Antunes? Isso não é razão. Empurrei-o e precipitei-me para dentro da casa. O já velho, Antunes nada pode fazer, estava já sem força para me travar. A casa estava linda! Nova, como eu nunca a tinha visto. Mas como? Se o meu papa estava preso, quem tinha posses para sustentar a casa e tudo aquilo? O Sr. Antunes ordenou que saísse, mas eu não o ouvia, não queria saber, estava muito intrigado. Ouvi vozes que vinham da sala. Pareciam vozes de criança. Fui entrando. No sofá grande uma mulher, de costas, falava com duas crianças, que a escutavam com muita atenção. Não deram pela minha entrada. Um arrepio percorreu-me as costas. Uma das crianças era a prima, a Helena. Não podia ser! Gritei de espanto: HELENA!! Ao mesmo tempo entra o Sr. Antunes. As crianças assustam-se com o grito e gritam ainda mais alto, a mulher também assustada levanta-se e volta-se. Helena? És tu? A mulher era a prima. O Sr. Antunes agarra-me e tenta tirar-me dali. Sacudi-o com tamanha força que foi embater na mesa com a cabeça. Ficou inconsciente. Afonso? És tu? Estás vivo? O que estás aqui a fazer? Não sabes que não podes estar aqui? Crianças corram lá para cima. Disse Helena. Eu não as deixei passar e agarrei em ambas. A miúda era igual, igual à prima, impressionante. Então quem são estes, Helena? Os teus filhos, é? Que lindos! Vai se uma pena... Helena viu os meus olhos e começou a implorar. Não, por favor, mais tristeza não! Não consigo suportar mais. Dizia Helena, já com uma lágrima no olho. Achas que iria fazer isso minha rica prima? Dizia eu com um tom maléfico. Enquanto isso, as crianças não paravam de gritar, mandei-as calar, depois levei-as para a cave e deixei-as lá, fechadas à chave. Helena implorava e puxava-me, mas eu estava cego de raiva. Não conseguia ver mais nada, a vingança, o ódio, tudo, tudo! Os anos que tinha perdido, a felicidade, o afecto, tinha perdido tudo e tudo culpa da prima, a maravilhosa prima. Estava mais linda que nunca. Fui pacientemente para a sala. Ela tentava desesperadamente abrir a porta da cave. Ali fiquei na sala, até que ela com um machado na mão corre na minha direcção, para me tentar matar. Consegui evitá-la a muito custo, a loucura estava espelhada na cara dela, a todo o custo tinha que me matar. Corremos pela casa fora, parecia que tínhamos voltado à infância. Que giro! Por fim consegui tirar-lhe o maçado da mão e pedi que se acalmasse. Necessitava falar com ela. A princípio nada que eu dissesse fazia diferença, ela só queria soltar as crianças. Mas com o passar das horas, lá se acalmou e sentou-se comigo na sala. Minha prima, minha linda e amada prima, como estás? Vejo que estás mais bonita que nunca... Os dias correm-te bem? Estás com muito bom aspecto. Casas-te? Filhos, muito bem! Gosto do que estou a ver. Dizia-o com um misto de rancor e saudade. Não havia qualquer tipo de dúvida, eu amava-a. Mas não conseguia dizê-lo. Ouve Afonso, eu não sei o que se passou contigo, não sei mesmo, mas eu não sou culpada dos teus horrores. Como seria possível ela ter a coragem de dizer aquilo. Eu não estava a acreditar. Desde o dia em que te bati, aqui neste sofá, que tudo para mim mudou. Não compreendes. E não compreendia mesmo. Afonso, julgas que foste o único? E eu? Sabes o quanto sofri? Sabes o que me aconteceu depois desse dia? O teu querido papa mandou-me para um colégio de freiras, pedido no tempo e no espaço, só sai de lá aos 20 anos e foi porque fugi. Como se isso não bastasse, perseguiu-me até aos confins da terra, fez-me passar pelas piores situações da minha vida, só para lhe escapar. Ainda me vens com o discurso de coitadinho? Não te conhecia assim Afonso. Mas olha que pensava que ele também te tinha matado. Fiquei muito triste, mesmo muito. Tu eras a minha única esperança de alguma vez ser feliz na vida. Não aparecestes, nada, ninguém sabia de ti. Sabes quem foi o teu pai? Sabes do que ele é capaz? Ele mata com as próprias mãos, é um assassino! È um louco! Matou o meu marido! O meu marido era um cirurgião que conheci na cidade e numa discussão à cerca de doenças que podem ser combatidas com cirurgia, em que o teu querido papa acreditava que as doenças só podem ser combatidas com mesinhas, parvas e muita reza, matou de um só golpe no pescoço. Aquelas palavras perfuravam-me o coração. Pareciam tão absurdas, era um cenário tão surrealista. Tudo o que eu acreditava estava ali a ser ultrajado, transformado em barbaridades e dito pela única pessoa que alguma vez podia pensar em matar, torturar, fazer mal e o que oiço eu? Que o mau da fita é o meu pai. Achei aquilo muito descabido. Como pode ser isso verdade? Quem pagava a minha mensalidade no colégio? Quem me enviou a mensagem da morte da minha mãe? Para todas estas perguntas Helena respondeu, O Sr. Antunes... Não podia ser, era demasiado incrível, não podia ser. E julgas que a tua mãe morreu de morte natural? Foi assassinada pelo teu papa, que aliás, não o era. Era demais aquela foi a gota de água. Cala-te! E dei-lhe um estalo, com toda a força. Isso é demais, estás a tentar que eu te poupe a vida e a dos teus filhos! Acorda! Já não tens 7 anos, eu também não, eu já não acredito em ti! Helena, tu és a pessoa mais má que eu conheço, mas reles, mais cínica, pior que conheço. Deixa a minha casa e já! Esta é a minha casa, põe-te na rua e já!! Peguei-lhe no braço, mas ela não se moveu. Ela só olhava para mim e dizia que estava que eu estava errado e pedia que lhe deixasse contar tudo. Eu louco de desejo de lhe dar um beijo, ali junto a ela, mas ao mesmo tempo só lhe queria esperar uma faca, grande, muito grande no coração, para acabar com tudo aquilo. Nem pensei duas vezes, dei-lhe o beijo mais louco, apaixonado, cheio de amor e no final cravei-lhe o maçado no peito.

 

Epilogo

Este dia de inverno frio, em que o quarto do pequeno André e da pequena, Helena, a janela bate, com o vento enquanto eles descansam na cave. O Sr. Antunes, à muito que está ali inconsciente, junto à mesa. O meu querido paizinho, que jaze no cemitério de uma qualquer prisão e tu minha querida, que estiveste a ouvir a história que se repete todos os dias, com a tua inconsolada paciência, que estás aqui, ao meu lado a fazer-me companhia há anos, no teu preciso silêncio. Linda, linda, prima!

(Fala para o cadáver no cadeirão ao lado).

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Sente, mas mente.

 Nuvem densa, densa com carga feia, nojenta, cheia de vida morta, de volta, morta, que de tão viva não morre, cospe para o ar e apanha. Apanha? Sim, mas não. Morre só. Porque vive, só.

Carrega a árdua tarefa de ser, ou não ser, mas se é, será viva, a morta causa de tentar viver, numa total loucura, pura e dura, vive morta, ao passar a porta, alta, da ribalta, desce até ao mar, com um ar de satisfação, ignora, não chora, ou se chora, na hora, não vê, mas sê, o desprezo, a alienação, a tortura da futura, em brochuras de Verão, com sentido de Inverno, frio, gelado, mal amado, assassinado, morto e vivo ao mesmo tempo, sento?

Sente, mas mente.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

2 + 2 não é 7?

 - Rita?

- Sim...

- Porque tens ao lume duas panelas?

- Porque nunca sei qual delas é a mais vantajosa...

 

Este era o tema de conversa na Segunda-feira.

Qual a vantagem de ter duas hipóteses, quando podemos ter 1001?

 

Na verdade, a esperança de vida encarrega-se de responder a isso, por outro lado, há um ditado antigo que diz: Eu estou muito velho (mas muito novo). *

      *Procurei durante duas horas pelo ditado mais parvo do mundo e foi esse o eleito.

 

Quando pensamos em toda a latitude, ambígua escondida neste ditado antigo, sabemos que somos só um grão de pó, numa imensa latrina. O nosso âmago deixa-nos privados de sabedoria e a nossa razão inundada de certezas incertas.

 

No vislumbre de uma hipótese correcta, enchemo-nos de hipóteses, num emaranhado de questões analisadas por outros, que pensam e pensam, sabendo sempre que por mais que pensem, irão sempre tirar a conclusão incerta, certa para a altura em que é tomada, mas que pode muito bem ser incerta, por não ter sido introduzida mais uma hipótese.

 

Na mente humana só há uma hipótese: sobreviver.

 

Porque razão é que tentamos que outros sobrevivam? Porque nos fazem companhia? Mas a companhia mantém a sobrevivência? Estranho... pois entre dois (ou mais, não é há aqui a cena do casalinho, ok?) seres que querem-se manter vivos, deviam aniquilar o outro, para que consigam sobreviver em paz, sem ter de partilhar, fazer guerra, ter menos, ou mais que o outro, etc, etc... um sem fim de coisas sem sentido.

 

Será que a sobrevivência terá de ser sempre encarada como uma coisa colectiva? Porquê? Para quê duas penelas, duas hipóteses? Quando sabemos sempre à partida que uma delas é melhor...

 

Depois há o problema dos descentes, a prolongação da prolongação, de descendência, que nos descende das nossas dúvidas, incertezas, amores, desamores, vitórias, anarquias e por fim, a relação impensável com um ser, que nos pode levar à morte, mas isso é absolutamente irrelevante! Nesse caso há a “cena” dos dois tachos? Não… é que nem se pensa, o tacho que é a continuação, será sempre para manter cheio, ligado e ventajoso. Então será por isso que numa das religiões dizem que somos todos filhos de um só? Assim é mais fácil não ter dúvidas? Mas isso leva-nos a pensar que sou irmão da minha mãe… será normal? Ou não é para levar de uma forma literal? Não?! Então? É a brincar?! É um faz da conta, para que eu não me sinta mais, do que ela/e? Ou seja, voltamos ao mesmo: mais vale ter dois tachos ao mesmo tempo…

 

Gostava de terminar este orgasmo banal, com uma conclusão, mas o meu signo não o deixa. Logo... ponham sempre duas panelas ao lume, não vá o diabo tecê-las...

… por outro lado: na verdade isto tudo deixa de ter sentido, quando tens só uma boca do fogão…

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

E se....?

 O frio gelado que percorria a rua, não tinha orientação, nem sentido, soprava certo de sítios que não sabemos ainda como os descrever, ou sequer se têm de ser descritos.

No fundo da rua um cão cruzava a rua, fitando quem passava, numa atitude desafiadora, mas ao mesmo tempo vagabunda. Há muito que as janelas das casas térreas se mantinham negras, sem luz e vida. As luzes exteriores dos candeeiros velhos e corroídos pelo sal do mar, cintilavam ténues e sem vontade e aquecer seja quem fosse, muito menos dar vislumbre a um pedaço de animal que jazia na beira do passeio. O cão, de olfacto apurado e magro que nem um cão, salivava, tal como eu, mas por razões bem diferentes. A minha fome não iria ser saciada por um pobre pedaço de pombo, a minha fome iria ser saciada na energia libertada entre a guerra que se iria apoderar de mim, na luta entre o canídeo e o humano desarmado e, por conseguinte, à partida sem qualquer hipótese de vencer.

No entanto, a determinação da luta, da vontade de conseguir ter algum tipo de vitória, mesmo que fosse ténue, apoderou-se a cada segundo de mim. O cão, farejava em delírio, só com o sentido do pedaço de pombo infecto. Mas por outro lado, todo o tamanho do humano, transformou-se num pedaço de bovino suculento. Os olhos maiores que a boca, trespassavam o meu peito, na busca da sede ser consumida. Nada podia fazer, senão lutar.

Como humano, poderia ter várias soluções, entre elas, o bluff que poderia ganhar uma luta desigual, ao imitir sons que apavorassem o pobre cão enfraquecido pelo jejum, ou então, pegar mesmo no animal em peso e partir-lhe a coluna, mesmo que isso envolvesse ser perfurado por caninos de uma força que esmaga, mas iria conseguir recuperar e por outro lado, o pobre coitado não.

Pensei de outra forma. E se lhe desse de comer e ficasse amigo dele?

Ainda hoje caminha ao meu lado e não há igual.

sábado, 11 de novembro de 2023

Amnésia forçada

 Debatia-me com uma incrível sensação de mau estar. Na verdade, não sabia se seria das infinitas garrafas de cerveja que tinha bebido, se da enorme vontade e terminar a relação, mas que me sentia mal, sim. Pensei que seria melhor esperar pela manhã, visto que entre copos e berros de desespero, tudo tinha perdido o sentido e o senso.

Acordei com uma enorme sensação de que algo estaria errado, devido a algum acontecimento gravíssimo. Sabia que me tinha deitado, pois coloquei o despertador para ir trabalhar no dia seguinte, mas a dormência terrível que estava envolvido, por questões que se prendem com o facto que os humanos não são tolerantes ao álcool, fez-me tremer. A cama estava vazia, não encontrei qualquer tipo de barulho em casa, nem o cão que costumava pairar incerto às 6 e meia da manhã, se ouvia. Só o ruído de um sino, o da igreja, que batia neste momento as 7 horas. (Porque razão conto sempre as batidas do sino?) Arrastei-me ao quarto de banho, visto que questões fisiológicas eram mais gravosas que o facto de estar, ou não sozinho e o que se poderia ter passado na noite/tarde anterior. Liberto dos apertos, todo banhado e perfumado, visto-me e de seguida vasculhei cada metro, cada centímetro da casa e nada, não havia vivalma. Assustado, preocupado, mas por outro lado sentido o dever de estar no trabalho a horas, fez com que tudo passasse só de um: "Amor, estás bêbado, vamos para casa da minha mãe!" Algo que de facto já tinha acontecido pelo menos umas 10 vezes.

Saí e o meu carro não estava lá, mas chaves estavam na minha mão. O que ainda se tornou mais estranho. Não pensando duas vezes, ligo o meu telemóvel e deparo-me com outra situação insólita. Não era o meu telemóvel, sendo que por mais que tentasse, não sabia de quem seria. Confuso e sem tempo para pensar, resolvi ir de transportes. Pelo caminho tentei refazer a linha do tempo, mas sem efeito, pois parei de conseguir ter a noção do que seria o tempo, ao décimo shot de vodca. No trabalho todos parecem confusos e de certa forma surpresos e outros assustados, mas poderia ser só da minha confusa sensação. Comprimento todos os que sabia que iria ter resposta e depois de ver se tinha algum recado, sendo que tinha, ignoro e dirijo-me para a copa, onde um café nojento me esperava. Lá estava ela, a minha chefe. Ainda tentei dar meia-volta, mas não fui a tempo: "Flávio? Precisamos falar..." O tom grave trouxe-me memórias horríveis de momento trágicos, que não queria recordar. Passado violento, que terrores e tremores sem sentido, que me afectam desde que me lembro de mim. Pensei o pior. Perguntei: "Diz-me que não matei a minha família..."

 

 

Passado dois meses, só queria estar sempre na solitária, onde ninguém me poderia bater, amassar, espezinhar e mal tratar. Ninguém tem, ou sabe, o quão é terrível não ter conhecimento de nada, mesmo que nos fossem mostradas fotos de actos avassaladores, perpetrados por nós. Eu não tinha como me lembrar, a minha condição médica não me permitia entender, lembrar, ou se quer ter conhecimento do que se tinha passado. Também não iria explicar a um conjunto de pessoas com pouca e nenhuma formação, que sofrendo (consistente) de uma condição fisiológica, que me impedia ter racionalidade, após a entrada na minha corrente sanguínea de factores que deturpam efectivamente qualquer realidade. Se sabia? Sim, sabia que não podia, que todo o meu corpo se tornava perigoso para com outras pessoas, após a entrada fria de substâncias desse calibre.

 

No julgamento, não fui poupado e mesmo depois de ter conseguido alguém que me conseguisse entender, mais ninguém o fez, pois, o resultado foi devastador. Teria de arcar com as consequências terríveis. Toda a minha razão de ser tinha-se consumido, finado e só restava uma solução, terminar com o que tinha causado tremenda acção. Sem pensar duas vezes e já em solitária, resolvi terminar com aquilo tudo.

 

Parei e pensei: mas um jarro chinês falso é assim tão importante? Pedi o divórcio, mudei-me para a Austrália e tornei-me o primeiro cultivador de cães selvagens.

 

PS: continuo sem saber quem levou o meu carro e de quem era o telemóvel. Por outro lado, o médico já me alterou a medicação...

sábado, 7 de outubro de 2023

O sonho

 Acordei. Acordei e o sol ainda não raiva. A raiva de não conseguir dormir dominava-me. Porque razão não dormia mais? Reflectia enquanto olhava o tecto cravejado de espojos de mosquitos mortos pelas almofadas ensanguentadas, reflexo das noites quentes, tórridas de Verão.

Viro-me para o outro lado e adormeço - penso eu. Não, nada me faria voltar a dormir. O sonho estava cada vez mais a clarear na minha memória... ainda pairava, como uma pena de passarinho, que teimava a ficar suspensa, envolta em várias brisas que percorriam o quarto. O calor da cama quase que me sufocava, as almofadas ao toque pareciam que tinha sido lavadas, lavadas em suor, o cheiro nauseabundo do desejo, da vontade mais querer e não puder...

Pus-me a fazer um resumo do que tinha vivido no sonho e desde logo tive um arrepio, seguido de um estremecimento avassalador. Continuei...

 

"Procurava desesperadamente um lugar para passar a noite. Fosse onde fosse, desde que a minha pobre carteira o conseguisse pagar. Uma camarata, um quarto, algo... não ia mais uma vez ficar num vão de escada qualquer. A viagem tinha-me sugado muito do orçamento que tinha e numa localidade tão afastada das grandes cidades, é sempre mais complicado encontrar o quer que seja para passar a noite, ou pelo menos, de uma forma decente. Percorria a noite, que já se tornava fria, mas não terrivelmente fria, só uma brisa de norte incomodava os meus globos oculares e secava as minhas narinas. Uma rua, outra e aquela localidade iria terminar dentro em breve e nada, nem um sinal... ainda com algumas luzes ligadas, viam-se pessoas a acomodarem-se para o merecido descanso. Dobro uma esquina e no meio da rua uma mulher olhava o céu, de costas por mim, como se buscasse absolvição, ou até mesmo procurando ser salva. Fiquei a mirá-la ao longe. Balbuciava palavras sem nexo, de braços no ar, com uma lágrima nos olhos direito que lhe escorria pela face, conseguia-se ouvir:

- Porquê? Porquê? Porquê eu!?

Pensei que seria melhor dar a volta para trás, mas quando o tentava fazer, acidentalmente dei um pontapé numa garrafa que jazia fazia no chão.

- Quem vem lá?!? És tu?!? És?!? Voltaste? Diz-me que és tu!!!

Dizia estas palavras, só rodando a cabeça, mantendo toda a pose, em que a encontrara.

- Desculpe... - disse eu, com uma vez muito tremula e de certa forma, com receio. Não era uma imagem muito normal.

- Desculpe?! És tu ou não?! Tens nome?

Neste momento todo o meu corpo queria fugir dali, mas a minha alma mantinha a curiosidade e, por conseguinte, fiquei estático.

- Hipólito. - disse eu.

- Quem?! Eu não te conheço, pois não? Espero que não... senão isto pode-se tornar perigoso!

Cada vez mais a minha alma pendia para o mesmo desejo do corpo, sair dali a sete pés!

- Não minha Sra., não me conhece... - já com a voz em vibrato.

- Bem, então assuma-te aqui junto a mim. Eu não faço mal...

Ainda parado, tentei descontrair, visto que de facto não parecia assim tão grave como isso.

- Sente-se bem, minha Sra.?

- Senhora? Isso pergunto eu: sente-se bem?!? Senhora?!? - e com isto dá uma gargalhada quase macabra.

- Oh... desculpe, não a quis ofender, foi por uma questão de educação ...

- Não tem mal. - dizendo isto, abandonou a pose de braços erguidos e voltando-se para mim, exibia uma túnica semiaberta, não tendo qualquer tipo de roupa por baixo.

Estando eu a mais de 50 metros da mesma, achei estranho vislumbrem-se machas escuras na túnica. Diria mesmo que seria sangue.

- Venha, não se acanhe. Já percebi que não é destas paragens. De passagem? Para ficar?

Todo o semblante tinha mudado, de um desespero total, parecia nesse momento deter unicamente a curiosidade de me conhecer, ver, estar mais junto a ela. Anui ao seu chamamento e com passos de bebé, arrastei-me na sua direcção.

- Então, como disse mesmo que se chamava? Flávio?

- Não, Hipólito...

- Não ligue, tenho uma mania de que todos os estranhos se chamam Flávio. Será normal? Por certo que não, visto que também não o sou - dando uma risada forçada.

- Não sei explicar essas coisas da alma, mas pode ter a ver com algo passado, não sei...

- Não sabe? Como não sabe? Bem... tem ar que não saiba de facto. O que o traz por estas paragens?

- Estou há mais de 2 anos e meio a vaguear por esse mundo fora e é mais uma passagem. Bastante interessante por sinal.

- Como fala tão bem Português?

- Porque sou.

- Ah... muito bem. Então não conhecia o nosso país, será isso? Estranho... conhecer o mundo inteiro e nunca ter passado por um lugar por este... até bastante conhecido.

- Podemos dizer que estou na "volta".

- Ou seja, está a terminar a sua viagem, é isso?

- Podemos dizer que sim...

- E porque não continua, parece tão bem-adaptado...

- Na verdade não tenho resposta para essa pergunta, mas talvez sinto o chamamento de voltar a "casa".

- Tem casa? É de onde?

- Não tenho casa, nasci numa aldeia junto à serra da Malcata. Depois de ter ficado sem qualquer tipo de parentes, vendi tudo o que tinha e fui...

- Vejo que no meio da sua fuga, há aí um resquício de saudade.

- Nem sei bem, visto que se voltar à aldeia, não irei sentir feliz.

- Feliz?!? - e deu uma gargalhada sonora. - Feliz?! Oh meu caro viajante, inocente e talvez um romântico inveterado, isso não existe. São pressupostos edificados por pensadores e filósofos, que na verdade nem eles próprios conseguiram obter o resultado que tão apregoaram. É uma mentira, a felicidade não existe!

- Não? Como não? Quando rimos, quando sentimos amor...

- AMOR?! Isso é outra falácia! Outra ideia estúpida que só lembra mesmo aos escritores e poetas! Amor... ai o amor e o amor... o louco, cego amor, o que nos faz sentir com o coração a mil, o que nos faz suar, o que nos faz chora, quando queremos rir e quando queremos rir, só sentimos amor e amor faz-nos rir de chorar. Não o quero voltar a desiludir, mas... sim, não existe.

- Porque diz isso? Tem a certeza disso?

- Certezas?! Oh não! Mas onde vive o Sr.?! Como vive? Alienado de tudo, consegue sentir isso tudo?? Amor, ter certezas e ser feliz?! Que homem mais enganado nunca tinha visto!

- Fala no entanto com certezas e de uma forma apaixonada... - fez um silêncio. Olho-o nos olhos, fechou a túnica e disse:

- De certeza não quer entrar, ou vai ficar aí a olhar para mim??

 

Casou com ela e viveram juntos para sempre, na total infelicidade, da incerteza, que o amor seria a última coisa que iram sentir um pelo outro. No entanto, um sem o outro, nunca mais conseguiram viver.”

Eram já oito e meia e não consigo sair da cama, o sono apoderou-se de mim e este maldito corte que tenho no dedo, que me magoa e não me deixa descansar… só mesmo este sonho para ter podido descansar um pouco… ainda tenho de entender porque o esfaqueei…

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Homines Salsi

 "Juntas um punhado de pessoas, com um punhado de legumes e bates bem, até obter uma massa homogénea."


Dizia uma pessoa na TV. Fiquei perplexo, mesmo circunspecto. A imagem que não me abandona a retina, é a enorme colher de pau que mistura, e junta, num movimento absurdo, constante e ao mesmo tempo desigual, tal não são as diferenças de proporções entre os ingredientes juntos. O enorme esforço em obter uma massa homogénea sem que o sangue dos legumes se torne obsceno e os fluídos dos humanos, se tornem coalhados, grossos pela falta de calor momentâneo, que caracteriza a energia acumulada e gerada por um ser vivo, da classe dos hominídeos, mamíferos.


O enorme wok, de paredes concavas, gastas pelo uso de inadequado de utensílios de cozinha, ofusca o cozinheiro, que se vê obrigado a parar por uns segundos, visto que o cheiro e a luz o ofuscam. De que forma um cheiro ofusca? Simples. Exercício: 10 malaguetas picantes, das que picam a valer, numa frigideira com um fio de óleo muito quente e depois digam que não precisam de óculos de sol para terminar a coisa...


Nesse momento, o wok atinge a temperatura desejada, toda uma concordância de factores universais, fazem questionar a origem das pulgas e o bem-estar dos gatos sem pelos. Adjetivos que não nos fazem ficar indiferentes a toda a conjuntura gastronómica.


Será um prato real? Ou uma analogia? Dará que pensar? Serão os legumes as ideias? Serão os humanos os livros? Serão mesmo humanos, salteados com legumes?


As respostas estão dentro de cada um de nós. Na forma como comemos, na forma como escutamos, ou na forma como sentimos o calor do wok. Quem melhor que nós para saber como usar um wok? São essas as pessoas que sabem de facto quais são as respostas, quais são os legumes que temos de juntar aos humanos e cozinhar, lentamente, até obter um resultado homogéneo, que todos nós concordemos e nos pareça correcto, mesmo que seja absurdo.


Agora que já estão todos muito atentos e enternecidos por estas últimas palavras de conclusão e desfecho bonito, vamos lá então: Na Cannibal Island TV, Anne Dillan, tem um programa que em directo da cozinha do seu restaurante "Homines Salsi", 4 estrelas CAMAC e faz as delícias dos espectadores.