sexta-feira, 29 de julho de 2005

A Prima

A família
Os ossos doem-me, o frio, a humidade, essa maldita, mas bem vivida velhice, que me atormenta há anos. Mas graças a Deus tenho alguém com quem posso compartilhar estes dias de hoje, porque houve dias em que nada tinha, ninguém, só o vazio das paredes, o som do vento, que fustigava as janelas do piso de cima. E de todas, a do quarto do André e da pequena, que há muito estava partida, era a que mais me fazia arrepiar.
- Tenho que ir buscar mais lenha. - comentei.
O fogo brando, quase sumido, que quase não aquece, na lareira monstruosa e as sombras na parede, a fazerem lembrar mantos negros, como abutres, que esvoaçam pela sala, na noite.
Levantei-me, ao lado da lareira um cesto de verga, envelhecido pelo fumo e pelo calor, estava meio de lanha. Retirei dois troncos grossos e coloquei-os na lareira. Peguei no livro que lia, já há duas semanas. Aquela passagem em particular fez-me lembrar a minha infância. Os dias em que corria pela casa fora com a minha prima, na altura má como as cobras, matreira, dela nada se podia prever, mas o amor que sentia por ela, superava qualquer coisa. Um dia de Inverno, como este, andávamos a correr pela sala numa gritaria pegada. A minha prima tinha-me tirado do meu quarto um pequeno cavalinho de pau, que o meu tio tinha feito com a sua navalha, sempre impecavelmente afiada e com todo o carinho. E lá andava ela com o cavalinho na mão a troçar de mim e quando passava por esta lareira, fingia que atirava o cavalinho. Eu, em pânico, gritava e chorava. A maldade era tanta que nem um leve, suave, materno, doce, tão doce, “parem com isso!”, da minha querida mãe, a fazia parar. Eu nunca consegui compreender porquê. O que a levou a atirar o cavalinho para a lareira. Tenho cá as minhas suspeitas, mas é muito difícil de compreender. Com tamanha gritaria e choradeira, foi inevitável que o meu bem dito papá ia ouvir. Austero, severo, com voz de trovão, as mãos do tamanho de panelas de sopa, os olhos azuis, mais azuis que o céu e o bigode grisalho de pontas reviradas para baixo. Era muito alto, tão alto que não se lhe conseguia ver a alma, mas doce, tão amigo e afável e tão cruelmente justo, mesmo muito justo! Ao chegar à sala, soltou um, “gostava de saber o que me perturbou o sono!”. Eu não consegui soltar uma palavra que fosse, tudo se gelou dentro de mim. O cavalinho deixou imediatamente de existir, a única coisa que me ocorreu foi o destino da minha pobre prima, mas nem uma palavra, nada. Não conseguia salva-la. Quando me lembrava do que ela tinha feito, o ódio percorria o meu coração.
- O que se passou, Júlia? - Perguntou à minha mãe.
- Nada Senhor, nada se passou. – Respondeu a minha querida mãe, com a calma duma Santa.
Não achei justo. Mas era melhor assim, que aplicar a justiça do meu papá sobre a minha pobre prima. Ela, que era sempre muito irrequieta, quando o meu papá estava por perto, tornava-se na moça mais sossegada, mais angélica e doce que alguma vez havia existido. Eu, que padecia da mesma justiça do meu pai, suportei mal todo aquele clima obscuro de traição. Ele, que estava ainda de maus modos, sentou-se no seu grande cadeirão e pôs-se a olhar.
- Júlia, o seu filho está com um olhar muito rancoroso, algo se passou! Seria melhor contar-me o que se passou...- Disse o meu pai com ar severo.
- Senhor nada se passou! – Insistia a minha mãe.
Eu, eu nada podia fazer. O meu papá era contra a covardia que assolava a maioria das crianças e sabendo disso, insurgi-me.
- Prima, gostava que visses brincar comigo para o meu quarto... - Não me apercebi do que tinha dito. O meu pai quando estava na sala não queria que ninguém a abandonasse enquanto ele lá estivesse. Fiquei muito nervoso. A enorme e volumosa cabeça, voltou-se na minha direcção e de um só sopro, trovejou.
- O menino sabe que não pode fazer isso, não sabe? – O meu pai em tom de desafio.
Mais uma vez o meu corpo gelava, era como que todo o meu sangue quente nas minhas veias me abandonasse e no seu lugar corriam torrentes de gelo.
- Sim senhor... - Respondi com o coração na mão à espera da facada fatal.
A minha adorada prima, que de feia sempre teve muito pouco, olhou para mim e da sua boca linda, saiu a língua vermelha como uma cereja. O ódio foi superior à presença do meu pai. Nada me podia travar naquele instante. Saltei de um só impulso para cima dela e bati-lhe tanto com as mãos fechadas que nem as mãos vigorosas do meu papá conseguiram arrancar-me. Estava louco de raiva! A muito custo conseguiu separar-nos. A mãe, que sempre a vira com a calma de uma leve brisa, salta do enorme sofá deixando cair a sua primorosa renda e tenta também separar-nos. Eu fiquei nas mãos do meu pai. Ainda esperneava de raiva. Pela cara da minha prima escorria um fino fio de sangue que lhe vinha cabeça. A minha querida mãe, em pânico, olhou-me nos olhos e perfurou-me! O meu pai afastou-me dali de imediato, levou-me para o quarto e trancou-me a sete chaves. Fiquei quatro semanas a pão e água, de janela fechada, tapadas por fora. O caseiro, o Sr. Antunes, enquanto pregava as tábuas na janela, escorriam-lhe lágrimas grossas pela face seca pelo pó do campo, enquanto eu ficava ali encarcerado. Tinha uma vela que tinha de racionar, pois era a única para me fazer companhia. Todos os meus pensamentos estavam voltados num só sentido, a vingança! As quatro semanas transformaram-se em anos num colégio interno. Cresci rancoroso, fechado, triste, com pensamentos pecaminosos, sem vida interior. Nunca mais vi a minha amada mãe nem ela, a prima linda não me saía da cabeça... Quando soube da morte da minha mãezinha, abateu-se sobre mim uma tristeza e uma dor tão grandes que a única esperança tornou-se óbvia, tinha que me vingar.

A cidade
Com 19 anos, acabei todos os estudos, era agora médico. Não tinha um único amigo. A igreja ia-me dando algum apoio, mas até aquele dia nada nem ninguém sabia o que me trouxera àquele colégio. A única coisa que sabiam no colégio, era da existência de uma família que nada dizia, nem uma visita, nem uma carta, só um mensageiro com a morte da minha mãe e as mensalidades. Saí para a cidade com os meus 20 anos. O Padre Zacarias aconselhou-me um cirurgião muito famoso. Fiz-me ao caminho. Tinha crédito para um dia, não mais. Ao chegar à grande cidade pressenti algo nefasto, nada iria ser como até aí, iria ser bem pior. A agitação, o barulho, os olhares, os risos, as falas, os trajes, o cheiro, tudo era novo e distinto, nada igual ao que alguma vez tinha sentido. Mas, para além disso, senti um frio de medo a percorrer-me as costas. Bem que o Padre me havia avisado. Tal como o Padre me ensinara, perguntei a uma velhota que vendia fruta como fazer para chegar à morada do famoso cirurgião. Não sei quanto tempo andei a pé, mas perguntei indicações a sete velhotas que vendiam alimentos na rua. No final, bati à porta exausto. Ninguém... Esperei quatro dias. Ao final dos mesmos quatro dias, apareceu uma senhora de meia idade que, com muita ternura, me perguntou se eu estava perdido. Expliquei-lhe a razão pela qual estava ali e prontamente se ocupou de mim. Convidou-me a entrar, esperar pelo médico que tinha saído para fora por uns dias. Estava a morrer de fome. Só trazia uma mala e a roupa que tinha comigo e umas coroas para dormir, que guardei para comer algo. Em quatro dias tinha comido quatro maçãs. Estava mesmo com fome. O médico chegou passados alguns minutos. De olhos pequenos, muito elegante, muito aprumado, de chapéu alto e bengala, de cara muito lavada, sem uma única ruga, como se a pele fosse de cetim. Prontamente a senhora justificou a minha presença. O médico ficou muito impressionado, tão novo e já médico?! Expliquei em poucas palavras o meu passado e o médico compreendeu. Esticou a sua mão, muito macia e fria.
- Dr. Ernesto de Vasques, às suas ordens.
Eu nem sabia o que dizer, estendi a minha mão e apresentei-me,
- Afonso Biscaia, um seu criado.
Foi a primeira vez em 15 anos que disse o meu nome a um estranho. De certa forma não me soou bem, nem a mim, nem ao Dr.
- Afonso Biscaia? De onde? - Perguntou de sobrolho levantado.
- De Vandins de Cima, Sr. Dr. - disse eu a medo.
- Não acredito! - E dizendo isto o Dr. dá um passo a trás, com o olhar raiado de espanto.
- Tens a certeza? - Perguntou ainda incrédulo.
- Sim Sr. Dr., tenho.
Eu não compreendia o que se passava. Ele, pega no meu braço com toda a força e atira comigo para fora de casa, com a mala que trazia e aconselha-me a sair da cidade o mais rápido possível. Algo se tinha passado e tinha a ver com a minha família, algo de muito grave. Não podia ser mero acaso, o Dr. Ernesto não podia conhecer a minha família, seria um verdadeiro acaso. Peguei na mala. Estava desesperado. Não sabia para onde ir. Já era noite. Pernoitei num vão de escada ali perto. Pela manhã, resolvi procurar algo para fazer. Se ia ficar na cidade, teria de arranjar sustento. Durante dois dias procurei trabalho, ninguém me queria. Era demasiado franzino para fazer trabalhos pesados e eram os únicos que encontrava. Por fim, consegui um emprego numa fábrica de peles. Trabalhava-se do nascer ao pôr do sol, sete dias por semana e dormia-se dentro da fábrica, juntamente com mais centenas de operários. Durante anos a fio trabalhei naquela fábrica. Via muito poucas vezes a luz do dia. Mais uma vez, o isolamento era profundo, os pensamentos cada vez mais densos. Nada nem ninguém sabia quem eu era. De três em três meses tinha folga. Um dia, numa dessas folgas, saí e nunca mais voltei. Dentro da fábrica tinha-me informado como teria que fazer para chegar à estação de comboios. Assim fiz, com o pouco dinheiro que me pagavam, juntei o suficiente para sair daquele inferno e meti-me no comboio, rumo a casa.

A casa
Na viagem, pensava em várias coisas. A primeira, e a mais antiga, a vingança, a segunda, era saber o que se tinha passado para aquele Médico. Porquê aquela reacção? E, a terceira, era se o meu papá ainda estaria vivo. A viagem demorou cerca de seis dias. Estava realmente muito longe. Depois de um dia no comboio, dois dias de diligência, mais dois a pé e um pelo meio para descansar. Quanto mais me aproximava da região, maior era o aperto no coração, não sabia se estava a fazer bem. Por um lado, só pensava numa coisa, o reencontro com o passado e a saudade, por outro, o rancor, o ódio.
Estava agora com 29 anos, deformado, muito envelhecido, pálido. No entanto, quanto mais me aproximava, mais me sentia a rejuvenescer. Lembrava-me dos momentos que passei com todos, a mãezinha, o papá e até mesmo a prima, a pobre prima. Órfã. Era filha do irmão do meu pai, que morreu juntamente com a minha tia, num incêndio. As circunstâncias do incêndio sempre foram muito dúbias, mas não seria muito difícil adivinhar o que se tinha passado. Comecei a lembrar-me dos tempos da escola primária. A minha prima Helena (há quanto tempo não digo este nome...?), que andava na mesma classe que eu e que gostava muito de andar de baloiço ela e eu. Ali ficávamos horas. O intervalo, que era de apenas meia hora, transformava-se, para nós, em apenas dois minutos. Andávamos sempre juntos, até havia quem dizia que éramos namorados, mas isso não podia ser! Mas era de facto e por isso, por vezes, só para nos chatearem atiravam-nos um pedra ou outra, mas nunca nos acertavam. Helena ficava muito irritada com isso, corria atrás deles e batia-lhes com tudo o que tinha à mão. Por vezes era eu que tinha de acatar com a culpas, pois uma menina não tem comportamentos daqueles. O comportamento na escola, levou a chamar a mãezinha, que perguntou nesse dia à noite, longe dos ouvidos do papá, o que estava eu a fazer com a Helena. Eu, com um brilho nos olhos, respondia:
- A andar de baloiço com a Helena.
A mãezinha abraçava-me e pedia para ter mais cuidado, se o papá soubesse seria muito grave.
No meio destes pensamentos lamechas, vinham as ondas de ódio. Um simples episódio tinha transformado toda a minha vida, repleta de possível prosperidade, como podia ter sido tão bom. Pensava eu lavado em lágrimas. E o que teria acontecido a Helena? Matreira e cínica como era, pensei que devia ter feito as coisas de forma a ser perfilhada pelos meus pais. Ai que dor! Continuei o meu caminho, estava quase a chegar, já sentia o cheiro. Ao longe, por entre os cedros altos, avisto as chaminés do casarão, imponentes como sempre. Parei, achei aquilo absurdo. O que estava eu a fazer ali? Não tinha sentido. Passaram muitos anos, eu para esta gente estaria morto, mesmo se não estivesse, deveria estar. E também eu devia enterrar este meu passado horrendo e sair daqui. Com este pensamento voltei para trás. Mal iniciei a minha caminhada para trás, parei de novo. Olhei para o casarão, voltei-me na sua direcção. O ódio apoderou-se dos meus punhos, cerrei-os e fiz-me de novo ao caminho, tinha de me vingar! Estava tudo com muito bom aspecto, todo pintado de branco, de um branco angelical. O jardim estava impecável, cheio com as cores do arco íris, lindo. Apetecia morrer naquele lugar, seria uma bênção. Limpei as vestes sujas de pó, arranjei o cabelo, o pouco que tinha, limpei um pouco os sapatos cheios de lama e peguei na grande maçaneta da porta principal. Como tudo aquilo me parecia bem mais pequeno, quase normal. Enquanto esperava que alguém abrisse a porta, olhei mais uma vez o jardim e reapreciei a sua beleza. Acho que nunca tinha reparado, ou será que me tinha esquecido? Envolto nestes pensamentos, sinto a porta a abrir-se. Voltei-me e lá estava, como imaginei, o Sr. Antunes, o fiel caseiro, não me reconheceu.
- Não estamos a dar nada, nem sequer temos trabalho para si, vá-se embora! – Disse com ar altivo.
Fiquei calado. Olhei nos olhos dele. O Sr. Antunes teve um estremecimento e tombou um passo atrás.
- Menino Afonso...? - Ficou sem qualquer tipo de expressão, nada, ali ficou estarrecido, petrificado. - Não é possível! – eram as únicas palavras que dizia.
- Posso entrar Antunes? - Perguntei com um leve sorriso nos lábios, o primeiro dos últimos 22 anos.
- Não sei... - respondeu.
O que se teria passado? Primeiro o Médico, depois isto? O que se tinha passado? Fiquei transtornado.
- O menino não sabe? - Perguntou-me o Sr. Antunes.
- Não sei de nada Antunes, nada! Desde que cheguei à cidade que tudo se tornou muito estranho, sem explicação. Eu não mereço isto! Diga-me Antunes, o que foi? O que se passou? - Estava cada vez mais desesperado, confuso, sem rumo, tinha chegado ali com tanto esforço, com tanta dor acumulada, com todo o rancor do mundo, com o ódio que consumia o coração e alguém ali especado na porta da minha casa, a fazer-me perguntas, o que me transtorna ainda mais, o que me faz preocupar com esta gente? Gente que me abandonou, que me deixou, como a um reles cão de rua. Era demais!
- Antunes, de uma vez por todas diga-me o que se passou !
- O seu pai assassinou uma pessoa, por causa da menina Helena e neste momento está preso.
Não me espantei, tudo seria possível, vindo da prima. Já nada tinha importância.

A prima
- E porque razão não me deixa entrar Antunes? Isso não é razão. Empurrei-o e precipitei-me para dentro da casa.
O já velho Antunes nada pode fazer, estava já sem forças para me travar. A casa estava linda! Nova, como eu nunca a tinha visto. Mas como? Se o meu papá estava preso, quem tinha posses para sustentar a casa e tudo aquilo? O Sr. Antunes ordenou que saísse, mas eu não o ouvia, não queria saber, estava muito intrigado. Ouvi vozes que vinham da sala. Pareciam vozes de criança. Fui entrando. No sofá grande uma mulher, de costas, falava com duas crianças que a escutavam com muita atenção. Não deram pela minha entrada. Um arrepio percorreu-me as costas. Uma das crianças era a prima, a Helena. Não podia ser! Gritei de espanto: HELENA!!
Ao mesmo tempo entra o Sr. Antunes. As crianças assustam-se com o grito e gritaram ainda mais alto, a mulher também assustada levanta-se e volta-se.
- Helena?! És tu?! A mulher era a prima.
O Sr. Antunes agarra-me e tenta tirar-me dali. Sacudi-o com tamanha força que foi embater com a cabeça na mesa. Ficou inconsciente.
- Afonso? És tu? Estás vivo? O que estás aqui a fazer? Não sabes que não podes estar aqui? Crianças, corram lá para cima - Disse Helena.
Mas eu não as deixei passar e agarrei-as. A miúda era igual, igual à prima, impressionante.
- Então quem são estes, Helena? Os teus filhos, é? Que lindos! Vai ser uma pena... Helena viu os meus olhos e começou a implorar.
- Não, por favor, mais tristeza não! Não consigo suportar mais! - Dizia Helena, já com uma lágrimas nos olhos.
- Achas que iria fazer isso minha rica prima? - Dizia eu num tom irónico e malévolo. Enquanto isso, as crianças não paravam de gritar, mandei-as calar, depois, levei-as para a cave e deixei-as lá, fechadas à chave. Helena implorava e puxava-me, mas eu estava cego de raiva. Não conseguia ver mais nada, a vingança, o ódio, tudo, tudo! Os anos que tinha perdido, a felicidade, o afecto, tinha perdido tudo e tudo por culpa da prima, a maravilhosa prima. Estava mais bonita que nunca. Fui pacientemente para a sala. Ela tentava desesperadamente abrir a porta da cave. Ali fiquei na sala, até que ela com um machado na mão corre na minha direcção, para me tentar matar. Consegui evitá-la a muito custo, a loucura estava espelhada na cara dela, a todo o custo tinha de me matar. Corremos pela casa fora, parecia que tínhamos voltado à infância. Que giro! Por fim consegui tirar-lhe o machado da mão e pedi que se acalmasse. Necessitava de falar com ela. A princípio nada que eu dissesse fazia diferença, ela só queria soltar as crianças. Mas com o passar das horas, acalmou-se e sentou-se comigo na sala.
- Minha prima, minha linda e amada prima, como estás? Vejo que estás mais bonita que nunca.. Os dias correm-te bem? Estás com muito bom aspecto. Casaste? Filhos, muito bem! Gosto do que vejo... - Dizia-o com um misto de rancor, saudade e ironia.
Não havia qualquer tipo de dúvida, eu amava-a. Mas não conseguia dize-lo.
- Ouve Afonso, eu não sei o que se passou contigo, não sei mesmo, mas eu não sou culpada dos teus horrores.
Como seria possível ela ter a coragem de dizer aquilo. Eu não estava a acreditar.
- Desde o dia em que te bati, aqui neste sofá, que tudo para mim mudou. Não compreendes. - E não compreendia mesmo.
- Afonso, julgas que foste o único? E eu? Sabes o quanto sofri? Sabes o que me aconteceu depois desse dia? O teu querido papá mandou-me para um colégio de freiras, perdido no tempo e no espaço, só saí de lá aos 20 anos e foi porque fugi. Como se isso não bastasse, perseguiu-me até aos confins da terra, fez-me passar pelas piores situações da minha vida, só para lhe escapar. Ainda me vens com o discurso de coitadinho? Não te conhecia assim Afonso. Mas olha que pensava que ele também te tinha matado. Fiquei muito triste, mesmo muito. Tu eras a minha única esperança de alguma vez ser feliz na vida. Nada nem ninguém sabia de ti. Sabes quem foi o teu pai? Sabes do que ele é capaz? Ele mata com as próprias mãos, é um assassino! É um louco! Matou o meu marido! O meu marido era um cirurgião que conheci na cidade e numa discussão, acerca de doenças que podem ser combatidas com cirurgia, em que o teu querido papá acreditava que as doenças só podiam ser combatidas com mezinhas parvas e muita reza, matou de um só golpe no pescoço...
Aquelas palavras perfuravam o meu coração. Pareciam tão absurdas, era um cenário tão irreal. Tudo o que eu acreditava estava ali a ser ultrajado, transformado em barbaridades e dito pela única pessoa que alguma vez podia pensar em matar, torturar, fazer mal, e o que ouvia eu? Que o mau da fita era o meu pai. Achei aquilo muito descabido. Como pode ser isso verdade? Quem pagava a minha mensalidade no colégio? Quem me enviou a mensagem da morte da minha mãe? Para todas estas perguntas, a Helena respondeu:
- O Sr. Antunes...
Não podia ser, era demasiado incrível, não podia ser.
- E julgas que a tua mãe morreu de morte natural? Foi assassinada pelo teu papá que, aliás, não o era.
Era demais! Aquela havia sido a gota de água.
- Cala-te! - E dei-lhe um estalo, com toda a força.
- Isso é demais, estás a tentar que eu te poupe a vida e a dos teus filhos! Acorda! Já não tens 7 anos, eu também não, eu já não acredito em ti! Helena, tu és a pessoa mais má que eu conheço, mais reles, mais cínica, pior que conheço. Deixa a minha casa e já! Esta é a minha casa, põe-te na rua! Já!! Peguei-lhe no braço, mas ela não se moveu. Ela só olhava para mim e dizia que eu estava errado e pedia que lhe deixasse contar tudo. Eu, louco de desejo, de lhe dar um beijo, ali, junto a ela, mas ao mesmo tempo só lhe queria espetar uma faca, grande, muito grande no coração, para acabar com tudo aquilo. Nem pensei duas vezes, dei-lhe o beijo mais louco, apaixonado, cheio de amor e, no final, cravei-lhe o machado no peito.

Epílogo
Este dia de Inverno frio, em que no quarto do pequeno André e da pequena Helena a janela bate com o vento, enquanto eles descansam na cave. O Sr. Antunes, há muito que está ali inconsciente, junto à mesa. O meu querido paizinho, que jaz no cemitério de uma qualquer prisão e tu, minha querida, que estiveste a ouvir a história que se repete todos os dias, com a tua inconsolada paciência, que estás aqui ao meu lado a fazer-me companhia, há anos, no teu precioso silêncio. Linda, linda, prima!
(Fala para o cadáver sentado no cadeirão ao lado).

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