quinta-feira, 18 de julho de 2024

A Prima (texto corrigido)

O mote.

(...) Depois os que riam passaram a chamar-nos namorados. Às vezes atiravam-nos uma pedra que nunca acertava e fugiam. Começámos a sair da escola durante o intervalo grande, que era de trinta minutos, acho eu, e desfrutávamos o facto de àquela hora o baloiço do parque estar sempre livre. Às vezes a meia hora passava a uma, ou mais, até que a professora chamou os nossos pais por mau comportamento. O que é que eu andava a fazer com a Helena, perguntou-me a minha mãe à noite. Andamos de baloiço, respondi. (...) Lembras-te Helena? Helena? Não me ouves? Tinha que ser nesta noite fria, que

 

O texto:

 

A Prima

 

 

A família

Os ossos doem-me, o frio, a humidade, esta maldita, mas bem vivida velhice, que me atormenta à anos. Mas graças a Deus tenho alguém com quem posso compartilhar estes dias de hoje, porque houve dias em que nada tinha, ninguém, só o vazio das paredes, o som do vento, que fustigava as janelas do piso de cima. A do quarto do André e da pequena, que há muito estava partida, era o que mais me arrepiava. Tenho que ir buscar mais lenha, comentei. O fogo brando, quase sumido, que quase não aquece, na lareira monstruosa, as sombras na parede, que mais fazem lembrar os mantos negros, como abutres, que esvoaçam pela sala, na noite. Levantei-me, ao lado da lareira um cesto de verga, envelhecido pelo fumo e pelo calor, estava meio de lanha. Retirei dois troncos grossos e coloquei-os na lareira. Peguei no livro que lia, já há duas semanas. Aquela passagem em particular fez-me lembrar a minha infância. Os dias em que corria pela casa fora com a minha prima, na altura má como as cobras, matreira, dela nada se podia prever, mas o amor que sentia por ela, superava qualquer coisa. Um dia de inverno, como este, andávamos a correr pela sala numa gritaria pegada. A minha prima tinha-me tirado do meu quarto um pequeno cavalinho de pau, que o meu tio tinha feito, com a sua navalha, sempre impecavelmente afiada, mas com todo o carinho. E lá andava ela com o cavalinho na mão a, a troçar de mim e quando passava por esta lareira, fingia que atirava o cavalinho. Eu em pânico, gritava e chorava. A maldade era tanta que nem um leve, suave, materno, doce, tão doce, parem com isso, da minha querida mãe, a fazia parar. Eu nunca consegui compreender porquê. O que a levou a atirar o cavalinho para a lareira. Tenho cá as minhas suspeitas, mas é muito difícil compreender. Com tamanha gritaria, e choradeira, foi inevitável que o meu bem-dito papa não ouvisse. Austero, severo, com voz de trovão, as mãos do tamanho de panelas de sopa, os olhos azuis, mais azuis que o céu, o bigode grisalho, de pontas reviradas para baixo. Era muito alto, tão alto, que não se conseguia ver a alma, mas era tão doce, tão amigo, afável, mas tão cruelmente justo, mesmo muito justo! Ao chegar à sala, soltou um, gostava de saber o que me perturbou o sono? Eu não consegui soltar uma palavra que fosse, tudo se gelou dentro de mim. O cavalinho deixou imediatamente de existir, a única coisa que me ocorreu foi o destino da minha pobre prima, mas nem uma palavra, nada. Não conseguia salvá-la. Quando me lembrava do que ela tinha feito, o ódio percorria o meu coração. O que se passou, Júlia? Perguntou à minha mãe. Nada Sr., nada se passou. Não achei justo. Mas seria melhor assim, que aplicar a justiça do meu papa sobre a minha pobre prima. Ela, que era sempre muito irrequieta, sempre que o meu papa estava por perto, tornava-se na moça mais sossegada, angélica, mais doce que alguma vez havia existido. Eu que padecia da mesma justiça do meu pai, suportei mal todo aquele clima obscuro de traição. Ele, que estava ainda de maus modos, sentou-se no seu grande cadeirão, e pôs-se a olhar. Júlia, o seu filho está com um olhar muito rancoroso, algo se passou. Seria melhor contar-me o que se passou. A minha mãe insistia, Sr. nada se passou. Eu nada podia fazer. O meu papa era contra a covardia que assolava a maioria das crianças e sabendo disso, insurgi-me. Prima, gostava que visses brincar comigo para o meu quarto. Não me apercebi do que tinha dito. O meu pai não quando estava a sala não queria que ninguém a abandonasse enquanto ele lá estivesse. Fiquei muito nervoso. A enorme e volumosa cabeça, voltou-se na minha direcção e de um só sopro, trovejou: O menino sabe que não pode fazer isso, não sabe? Mais uma vez o meu corpo gelava, era como que todo o meu sangue quente nas minhas veias me abandonasse e no seu lugar corriam torrentes de gelo. Sim Sr.. Respondia com o coração na mão à espera da facada fatal. A minha adorada prima, que de feia sempre teve muito pouco, olhou para mim e da sua boca, linda, saiu a língua vermelha como uma cereja. O ódio foi superior ao meu pai. Nada me podia travar naquele instante. Saltei de um só impulso para cima dela e bati-lhe tanto com as mãos fechadas, nem as mãos vigorosas do meu papa conseguiram me arrancar. Estava louco de raiva! A muito custo conseguiu separa-nos. A mãe que sempre a vira com a calma de uma leve brisa, salta do enorme sofá, deixando cair a sua primorosa renda, tentando também nos separar. Eu fiquei nas mãos do meu pai, ainda esperneava. Pela cara da minha prima escorria um fino fio de sangue, que lhe vinha cabeça. A minha querida mãe, em pânico, olhou-me nos olhos e perfurou-me! O meu pai, de imediato afastou-me dali, levou-me para o quarto e trancou-me a sete chaves. Fiquei quatro semanas a pão e água, de janela fechada, tapada por fora. O caseiro, o Sr. Antunes, enquanto pregava as tábuas na janela, escorriam-lhe lagrimas grossas, pela face seca do pó do campo, enquanto eu ficava ali encarcerado. Tinha uma vela que tinha que racionar, pois era a única, para me fazer companhia. Todos os meus pensamentos estavam voltados num só sentido, a vingança. As quatro semanas transformaram-se em anos, num colégio interno. Cresci rancoroso, fechado, triste, com pensamentos pecaminosos, sem vida interior. Nunca mais vi a minha amada mãe. E ela, a prima, linda, que não me saia da cabeça... Quando soube da morte da minha mãezinha, abateu-se uma tristeza e uma dor tão grande, que a única esperança tornou-se obvia, tinha que me vingar.

 

A cidade

Com 19 anos, acabei todos os estudos, era agora médico. Não tinha um único amigo. A igreja ia-me dando algum apoio, mas até aquele dia nada nem ninguém sabia o que me trouxera aquele colégio. A única coisa que sabiam no colégio, era da existência de uma família que nada dizia, nem uma visita, nem uma carta, só um mensageiro com a morte da minha mãe e a mensalidade. Sai para a cidade com os meus 20 anos. O Padre Zacarias aconselhou-me um cirurgião muito famoso. Fiz-me ao caminho. Tinha crédito para um dia, não mais. Ao chegar à grande cidade, pressenti algo nefasto, nada iria ser como até ai, iria ser bem pior. A agitação, o barulho, os olhares, os risos, as falas, os trajes, o cheiro, tudo era novo e distinto, nada igual ao que alguma vez tinha sentido. Mas além disso, senti um frio de medo a percorrer as costas. Bem que o Padre me avisou. Tal como o Padre me ensinara, perguntei a uma velhota que vendia fruta, como fazer chegar à morada do famoso cirurgião. Não sei quanto tempo andei a pé, mas perguntei indicações a sete velhotas que vendiam alimentos na rua. No final bati à porta, exausto. Ninguém... Esperei quatro dias. Ao final dos mesmo quatro dias, apareceu uma senhora de meia-idade, que com muita ternura me perguntou se eu estava perdido. Expliquei-lhe a razão pela qual estava ali e prontamente se ocupou de mim. Convidou-me a entrar, esperar pelo médico que tinha saído por uns dias. Estava a morrer de fome. Só trazia uma mala e a roupa que tinha comigo e umas coroas para dormir, que guardei. Em quatro dias, tinha comido quatro maçãs. Estava mesmo com fome. O médico chegou passados alguns minutos. Muito elegante, muito aprumado, de chapéu alto, bengala, de cara muito lavada, sem uma única ruga, como se a pele fosse de cetim, olhos pequenos. Prontamente a senhora justificou a minha presença. O médico ficou muito impressionado, tão novo e já médico?! Expliquei em poucas palavras o meu passado e o médico, compreendeu. Esticou a sua mão, muito macia e fria. Dr. Ernesto de Vasques, às suas ordens. Eu nem sabia o que dizer, estendi a minha mão e apresentei-me, Afonso Biscaia, um seu criado. Foi a primeira vez em 15 anos que disse o meu nome a um estranho. De certa forma não me suou bem, nem a mim nem ao Dr. Ernesto. Biscaia? De onde? Perguntou de sobrolho levantado. De Vandins de Cima, Sr. Dr., disse eu a medo. Não acredito! E dizendo isto o Dr. dá um passo a trás, com o olhar raiado de espanto. Tens a certeza? Perguntou ainda incrédulo. Sim Sr. Dr., tenho. Eu não compreendia o que se passava. Pega no meu braço com toda a força e atira comigo para fora da sua casa, com a mala que trazia e aconselha-me a sair da cidade o mais rápido possível. Algo se tinha passado e era com a minha família, algo de muito grave. Não podia ser mero acaso, o Dr. Ernesto não podia conhecer a minha família, seria um verdadeiro acaso. Peguei na mala. Estava desesperado. Não sabia para onde ir. Já era noite. Pernoitei num vão de escada ali perto. De manhã resolvi procurar algo para fazer. Se ia ficar na cidade, teria de arranjar sustento, pelo menos até decidir o que fazer. Procurei durante dois dias trabalho, ninguém me queria, era demasiado franzino para fazer trabalhos pesados e eram os únicos que encontrava. Por fim consegui um emprego numa fábrica de peles. Trabalhava-se do nascer ao por do sol, sete dias por semana e dormia-se dentro da fábrica, juntamente com mais centenas de operários. Durante anos a fio trabalhei, naquela fábrica. Via muito poucas vezes a luz do dia. Mais uma vez, o isolamento era profundo, os pensamentos cada vez mais densos. Nada nem ninguém sabia quem eu era. De três em três meses tinha folga. Um dia, numa dessas folgas, sai e nunca mais voltei. Dentro da fábrica tinha-me informado como teria que fazer para chegar à estação de comboios. Assim fiz, com o pouco dinheiro que me pagavam, juntei o suficiente, para sair daquele inferno e meti-me no comboio, ruma a casa.

 

A casa

Na viagem, pensava em várias coisas. A primeira, e a mais antiga, a vingança, a segunda, era saber o que se tinha passado, para aquele Médico ter aquela reacção e a terceira era se o meu papa ainda estava vivo. A viagem demorou cerca de seis dias. Estava realmente muito longe. Depois de um dia no comboio, dois dias de diligência, mais dois a pé e um pelo meio para descansar. Quanto mais me aproximava da região, maior era o aperto no coração, não sabia se estava a fazer bem. Por um lado só pensava numa coisa, o reencontro com o passado e a saudade, por outro lado o rancor, o ódio. Estava agora com 29 anos, deformado, muito envelhecido, pálido. No entanto quando mais me aproximava, sentia-me a rejuvenescer. Lembrava-me dos momentos que passei com todos, a mãezinha, o papa e até mesmo a prima, a pobre prima. Órfã. Era filha do irmão do meu pai, que morreu juntamente com a minha tia, num incêndio. As circunstâncias do incêndio sempre foram muito dúbias, mas não seria muito difícil adivinhar o que se tinha passado. Comecei a lembrar-me dos tempos da escola primária. A minha prima, Helena, (há quanto tempo não digo este nome...?), que andava na mesma classe que eu, gostava muito de andar de baloiço, ela e eu. Ali ficávamos, horas. O intervalo, que era de apenas meia hora, transformava-se, no entanto para nós parecia só dois minutos. Andávamos sempre juntos, até havia quem dizia que éramos namorados, mas isso não podia ser! Mas era de facto e, por isso por vezes, só para nos chatear atiravam-nos uma pedra ou outra, mas não nos acertavam. Helena ficava muito irritada com isso, corria atrás deles e batia-lhes, com tudo o que tinha à mão. Por vezes era eu que tinha de acatar com a culpas, pois uma menina não tem comportamentos daqueles. O comportamento na escola, levou a chamar a mãezinha, que perguntou nesse dia à noite, longe dos ouvidos do papa, o que estava eu a afazer com a Helena. Eu com um brilho nos olhos, respondia, a andar de baloiço com a Helena. A mãezinha abraçava-me e pedia para ter mais cuidado, se o papa soubesse seria muito grave. No meio destes pensamentos lamechas, vinham as ondas de ódio. Um simples episódio tinha transformado a minha vida, repleta de prosperidade, como podia ter acontecido, pensava eu lavado em lágrimas. E o que teria acontecido a Helena, matreira como era e cínica, pensei que devia ter feito as coisas de forma a ser perfilhada pelos meus pais. Ai que dor! Continuei o meu caminho, estava quase a chegar, já sentia o cheiro. Ao longe, por entre os cedros altos, avisto as chaminés do casarão, imponentes como sempre. Parei, achei aquilo absurdo. O que estava eu a afazer ali? Não tinha sentido. Passaram muitos anos, eu para esta gente estaria morto, mesmo se não estivesse, devia estar. E eu também devia enterrar este meu passado horrendo e sair daqui. Com este pensamento voltei para trás. Mal iniciei a minha caminhada para trás, parei de novo. O ódio apoderou-se dos meus punhos, cerrei-os e fiz-me ao caminho, tinha que me vingar! O casarão estava com muito bom aspecto, todo pintado de branco, de um branco angelical. O jardim estava impecável, cheio de cores do arco-íris, lindo. Apetecia morrer naquele lugar, seria uma benção. Limpei as vestes sujas de pó, arranjei o cabelo, o pouco que tinha, limpei um pouco os sapatos, cheios de lama e peguei na grande maçaneta da porta principal. Como tudo aquilo me parecia bem mais pequeno, quase normal. Enquanto esperava que alguém abrisse a porta, olhei mais uma vez o jardim e como estava bonito. Acho que nunca tinha reparado, ou será que me tinha esquecido? Envolto nestes pensamentos, sinto a porta a abrir-se. Voltei-me e lá estava, como imaginei, o Sr. Antunes, o fiei caseiro, não me reconheceu. Não estamos a dar nada, nem se quer temos trabalho para si, vá-se embora! Fiquei calado. Olhei nos olhos dele. O Sr. Antunes teve um estremecimento e tombou um passo a trás. Menino Afonso...? Ficou sem qualquer tipo de expressão, nada, estava gelado, petrificado. Não é possível, era as únicas palavras que dizia. Posso entrar Antunes? Perguntei com um leve sorriso nos lábios, o primeiro dos últimos 22 anos. Não sei, respondeu. O que se passara? Primeiro o Médico, depois isto? O que se tinha passado? Fiquei transtornado. O menino não sabe? Perguntou-me o Sr. Antunes. Não sei de nada Antunes, nada! Desde que cheguei à cidade que tudo se tornou muito estranho, sem explicação. Eu não mereço isto! Diga-me Antunes, o que foi? O que se passou? Estava cada vez mais desesperado, confuso, sem rumo, tinha chegado ali com tanto esforço, com tanta dor acumulada, com todo o rancor do mundo, com o ódio que me consumia o coração e alguém está ali especado na porta da minha casa, que me faz perguntas, que me transtorna ainda mais, que me faz preocupar com esta gente, que me abandonou, que me deixou, como um reles cão da rua. Isto não podia ser justo, isto era demais. Antunes de uma vez por todas diga-me o que se passou. O seu pai assassinou uma pessoa, por causa da menina Helena e neste momento está preso. Não me espantei, tudo seria possível, vindo da prima. Já nada tinha importância-

 

A prima

E porque razão não me deixa entrar Antunes? Isso não é razão. Empurrei-o e precipitei-me para dentro da casa. O já velho, Antunes nada pode fazer, estava já sem força para me travar. A casa estava linda! Nova, como eu nunca a tinha visto. Mas como? Se o meu papa estava preso, quem tinha posses para sustentar a casa e tudo aquilo? O Sr. Antunes ordenou que saísse, mas eu não o ouvia, não queria saber, estava muito intrigado. Ouvi vozes que vinham da sala. Pareciam vozes de criança. Fui entrando. No sofá grande uma mulher, de costas, falava com duas crianças, que a escutavam com muita atenção. Não deram pela minha entrada. Um arrepio percorreu-me as costas. Uma das crianças era a prima, a Helena. Não podia ser! Gritei de espanto: HELENA!! Ao mesmo tempo entra o Sr. Antunes. As crianças assustam-se com o grito e gritam ainda mais alto, a mulher também assustada levanta-se e volta-se. Helena? És tu? A mulher era a prima. O Sr. Antunes agarra-me e tenta tirar-me dali. Sacudi-o com tamanha força que foi embater na mesa com a cabeça. Ficou inconsciente. Afonso? És tu? Estás vivo? O que estás aqui a fazer? Não sabes que não podes estar aqui? Crianças corram lá para cima. Disse Helena. Eu não as deixei passar e agarrei em ambas. A miúda era igual, igual à prima, impressionante. Então quem são estes, Helena? Os teus filhos, é? Que lindos! Vai se uma pena... Helena viu os meus olhos e começou a implorar. Não, por favor, mais tristeza não! Não consigo suportar mais. Dizia Helena, já com uma lágrima no olho. Achas que iria fazer isso minha rica prima? Dizia eu com um tom maléfico. Enquanto isso, as crianças não paravam de gritar, mandei-as calar, depois levei-as para a cave e deixei-as lá, fechadas à chave. Helena implorava e puxava-me, mas eu estava cego de raiva. Não conseguia ver mais nada, a vingança, o ódio, tudo, tudo! Os anos que tinha perdido, a felicidade, o afecto, tinha perdido tudo e tudo culpa da prima, a maravilhosa prima. Estava mais linda que nunca. Fui pacientemente para a sala. Ela tentava desesperadamente abrir a porta da cave. Ali fiquei na sala, até que ela com um machado na mão corre na minha direcção, para me tentar matar. Consegui evitá-la a muito custo, a loucura estava espelhada na cara dela, a todo o custo tinha que me matar. Corremos pela casa fora, parecia que tínhamos voltado à infância. Que giro! Por fim consegui tirar-lhe o maçado da mão e pedi que se acalmasse. Necessitava falar com ela. A princípio nada que eu dissesse fazia diferença, ela só queria soltar as crianças. Mas com o passar das horas, lá se acalmou e sentou-se comigo na sala. Minha prima, minha linda e amada prima, como estás? Vejo que estás mais bonita que nunca... Os dias correm-te bem? Estás com muito bom aspecto. Casas-te? Filhos, muito bem! Gosto do que estou a ver. Dizia-o com um misto de rancor e saudade. Não havia qualquer tipo de dúvida, eu amava-a. Mas não conseguia dizê-lo. Ouve Afonso, eu não sei o que se passou contigo, não sei mesmo, mas eu não sou culpada dos teus horrores. Como seria possível ela ter a coragem de dizer aquilo. Eu não estava a acreditar. Desde o dia em que te bati, aqui neste sofá, que tudo para mim mudou. Não compreendes. E não compreendia mesmo. Afonso, julgas que foste o único? E eu? Sabes o quanto sofri? Sabes o que me aconteceu depois desse dia? O teu querido papa mandou-me para um colégio de freiras, pedido no tempo e no espaço, só sai de lá aos 20 anos e foi porque fugi. Como se isso não bastasse, perseguiu-me até aos confins da terra, fez-me passar pelas piores situações da minha vida, só para lhe escapar. Ainda me vens com o discurso de coitadinho? Não te conhecia assim Afonso. Mas olha que pensava que ele também te tinha matado. Fiquei muito triste, mesmo muito. Tu eras a minha única esperança de alguma vez ser feliz na vida. Não aparecestes, nada, ninguém sabia de ti. Sabes quem foi o teu pai? Sabes do que ele é capaz? Ele mata com as próprias mãos, é um assassino! È um louco! Matou o meu marido! O meu marido era um cirurgião que conheci na cidade e numa discussão à cerca de doenças que podem ser combatidas com cirurgia, em que o teu querido papa acreditava que as doenças só podem ser combatidas com mesinhas, parvas e muita reza, matou de um só golpe no pescoço. Aquelas palavras perfuravam-me o coração. Pareciam tão absurdas, era um cenário tão surrealista. Tudo o que eu acreditava estava ali a ser ultrajado, transformado em barbaridades e dito pela única pessoa que alguma vez podia pensar em matar, torturar, fazer mal e o que oiço eu? Que o mau da fita é o meu pai. Achei aquilo muito descabido. Como pode ser isso verdade? Quem pagava a minha mensalidade no colégio? Quem me enviou a mensagem da morte da minha mãe? Para todas estas perguntas Helena respondeu, O Sr. Antunes... Não podia ser, era demasiado incrível, não podia ser. E julgas que a tua mãe morreu de morte natural? Foi assassinada pelo teu papa, que aliás, não o era. Era demais aquela foi a gota de água. Cala-te! E dei-lhe um estalo, com toda a força. Isso é demais, estás a tentar que eu te poupe a vida e a dos teus filhos! Acorda! Já não tens 7 anos, eu também não, eu já não acredito em ti! Helena, tu és a pessoa mais má que eu conheço, mas reles, mais cínica, pior que conheço. Deixa a minha casa e já! Esta é a minha casa, põe-te na rua e já!! Peguei-lhe no braço, mas ela não se moveu. Ela só olhava para mim e dizia que estava que eu estava errado e pedia que lhe deixasse contar tudo. Eu louco de desejo de lhe dar um beijo, ali junto a ela, mas ao mesmo tempo só lhe queria esperar uma faca, grande, muito grande no coração, para acabar com tudo aquilo. Nem pensei duas vezes, dei-lhe o beijo mais louco, apaixonado, cheio de amor e no final cravei-lhe o maçado no peito.

 

Epilogo

Este dia de inverno frio, em que o quarto do pequeno André e da pequena, Helena, a janela bate, com o vento enquanto eles descansam na cave. O Sr. Antunes, à muito que está ali inconsciente, junto à mesa. O meu querido paizinho, que jaze no cemitério de uma qualquer prisão e tu minha querida, que estiveste a ouvir a história que se repete todos os dias, com a tua inconsolada paciência, que estás aqui, ao meu lado a fazer-me companhia há anos, no teu preciso silêncio. Linda, linda, prima!

(Fala para o cadáver no cadeirão ao lado).

quarta-feira, 10 de julho de 2024

Sente, mas mente.

 Nuvem densa, densa com carga feia, nojenta, cheia de vida morta, de volta, morta, que de tão viva não morre, cospe para o ar e apanha. Apanha? Sim, mas não. Morre só. Porque vive, só.

Carrega a árdua tarefa de ser, ou não ser, mas se é, será viva, a morta causa de tentar viver, numa total loucura, pura e dura, vive morta, ao passar a porta, alta, da ribalta, desce até ao mar, com um ar de satisfação, ignora, não chora, ou se chora, na hora, não vê, mas sê, o desprezo, a alienação, a tortura da futura, em brochuras de Verão, com sentido de Inverno, frio, gelado, mal amado, assassinado, morto e vivo ao mesmo tempo, sento?

Sente, mas mente.