Acordei. Acordei e o sol ainda não raiva. A raiva de não conseguir dormir dominava-me. Porque razão não dormia mais? Reflectia enquanto olhava o tecto cravejado de espojos de mosquitos mortos pelas almofadas ensanguentadas, reflexo das noites quentes, tórridas de Verão.
Viro-me para o outro lado e adormeço - penso eu. Não, nada
me faria voltar a dormir. O sonho estava cada vez mais a clarear na minha
memória... ainda pairava, como uma pena de passarinho, que teimava a ficar
suspensa, envolta em várias brisas que percorriam o quarto. O calor da cama
quase que me sufocava, as almofadas ao toque pareciam que tinha sido lavadas,
lavadas em suor, o cheiro nauseabundo do desejo, da vontade mais querer e não
puder...
Pus-me a fazer um resumo do que tinha vivido no sonho e
desde logo tive um arrepio, seguido de um estremecimento avassalador.
Continuei...
"Procurava desesperadamente um lugar para passar a
noite. Fosse onde fosse, desde que a minha pobre carteira o conseguisse pagar.
Uma camarata, um quarto, algo... não ia mais uma vez ficar num vão de escada
qualquer. A viagem tinha-me sugado muito do orçamento que tinha e numa localidade
tão afastada das grandes cidades, é sempre mais complicado encontrar o quer que
seja para passar a noite, ou pelo menos, de uma forma decente. Percorria a
noite, que já se tornava fria, mas não terrivelmente fria, só uma brisa de
norte incomodava os meus globos oculares e secava as minhas narinas. Uma rua,
outra e aquela localidade iria terminar dentro em breve e nada, nem um sinal...
ainda com algumas luzes ligadas, viam-se pessoas a acomodarem-se para o merecido
descanso. Dobro uma esquina e no meio da rua uma mulher olhava o céu, de costas
por mim, como se buscasse absolvição, ou até mesmo procurando ser salva. Fiquei
a mirá-la ao longe. Balbuciava palavras sem nexo, de braços no ar, com uma
lágrima nos olhos direito que lhe escorria pela face, conseguia-se ouvir:
- Porquê? Porquê? Porquê eu!?
Pensei que seria melhor dar a volta para trás, mas quando o
tentava fazer, acidentalmente dei um pontapé numa garrafa que jazia fazia no chão.
- Quem vem lá?!? És tu?!? És?!? Voltaste? Diz-me que és
tu!!!
Dizia estas palavras, só rodando a cabeça, mantendo toda a
pose, em que a encontrara.
- Desculpe... - disse eu, com uma vez muito tremula e de
certa forma, com receio. Não era uma imagem muito normal.
- Desculpe?! És tu ou não?! Tens nome?
Neste momento todo o meu corpo queria fugir dali, mas a
minha alma mantinha a curiosidade e, por conseguinte, fiquei estático.
- Hipólito. - disse eu.
- Quem?! Eu não te conheço, pois não? Espero que não... senão
isto pode-se tornar perigoso!
Cada vez mais a minha alma pendia para o mesmo desejo do
corpo, sair dali a sete pés!
- Não minha Sra., não me conhece... - já com a voz em
vibrato.
- Bem, então assuma-te aqui junto a mim. Eu não faço mal...
Ainda parado, tentei descontrair, visto que de facto não
parecia assim tão grave como isso.
- Sente-se bem, minha Sra.?
- Senhora? Isso pergunto eu: sente-se bem?!? Senhora?!? - e
com isto dá uma gargalhada quase macabra.
- Oh... desculpe, não a quis ofender, foi por uma questão de
educação ...
- Não tem mal. - dizendo isto, abandonou a pose de braços
erguidos e voltando-se para mim, exibia uma túnica semiaberta, não tendo
qualquer tipo de roupa por baixo.
Estando eu a mais de 50 metros da mesma, achei estranho vislumbrem-se
machas escuras na túnica. Diria mesmo que seria sangue.
- Venha, não se acanhe. Já percebi que não é destas
paragens. De passagem? Para ficar?
Todo o semblante tinha mudado, de um desespero total,
parecia nesse momento deter unicamente a curiosidade de me conhecer, ver, estar
mais junto a ela. Anui ao seu chamamento e com passos de bebé, arrastei-me na
sua direcção.
- Então, como disse mesmo que se chamava? Flávio?
- Não, Hipólito...
- Não ligue, tenho uma mania de que todos os estranhos se
chamam Flávio. Será normal? Por certo que não, visto que também não o sou -
dando uma risada forçada.
- Não sei explicar essas coisas da alma, mas pode ter a ver
com algo passado, não sei...
- Não sabe? Como não sabe? Bem... tem ar que não saiba de
facto. O que o traz por estas paragens?
- Estou há mais de 2 anos e meio a vaguear por esse mundo
fora e é mais uma passagem. Bastante interessante por sinal.
- Como fala tão bem Português?
- Porque sou.
- Ah... muito bem. Então não conhecia o nosso país, será
isso? Estranho... conhecer o mundo inteiro e nunca ter passado por um lugar por
este... até bastante conhecido.
- Podemos dizer que estou na "volta".
- Ou seja, está a terminar a sua viagem, é isso?
- Podemos dizer que sim...
- E porque não continua, parece tão bem-adaptado...
- Na verdade não tenho resposta para essa pergunta, mas
talvez sinto o chamamento de voltar a "casa".
- Tem casa? É de onde?
- Não tenho casa, nasci numa aldeia junto à serra da
Malcata. Depois de ter ficado sem qualquer tipo de parentes, vendi tudo o que
tinha e fui...
- Vejo que no meio da sua fuga, há aí um resquício de
saudade.
- Nem sei bem, visto que se voltar à aldeia, não irei sentir
feliz.
- Feliz?!? - e deu uma gargalhada sonora. - Feliz?! Oh meu
caro viajante, inocente e talvez um romântico inveterado, isso não existe. São pressupostos
edificados por pensadores e filósofos, que na verdade nem eles próprios
conseguiram obter o resultado que tão apregoaram. É uma mentira, a felicidade
não existe!
- Não? Como não? Quando rimos, quando sentimos amor...
- AMOR?! Isso é outra falácia! Outra ideia estúpida que só
lembra mesmo aos escritores e poetas! Amor... ai o amor e o amor... o louco,
cego amor, o que nos faz sentir com o coração a mil, o que nos faz suar, o que
nos faz chora, quando queremos rir e quando queremos rir, só sentimos amor e
amor faz-nos rir de chorar. Não o quero voltar a desiludir, mas... sim, não
existe.
- Porque diz isso? Tem a certeza disso?
- Certezas?! Oh não! Mas onde vive o Sr.?! Como vive? Alienado
de tudo, consegue sentir isso tudo?? Amor, ter certezas e ser feliz?! Que homem
mais enganado nunca tinha visto!
- Fala no entanto com certezas e de uma forma apaixonada...
- fez um silêncio. Olho-o nos olhos, fechou a túnica e disse:
- De certeza não quer entrar, ou vai ficar aí a olhar para
mim??
Casou com ela e viveram juntos para sempre, na total
infelicidade, da incerteza, que o amor seria a última coisa que iram sentir um
pelo outro. No entanto, um sem o outro, nunca mais conseguiram viver.”
Eram já oito e meia e não consigo sair da cama, o sono
apoderou-se de mim e este maldito corte que tenho no dedo, que me magoa e não
me deixa descansar… só mesmo este sonho para ter podido descansar um pouco… ainda
tenho de entender porque o esfaqueei…
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CU menta!