Primeira paragem.
Num dia, algures perdido num destes anos resolvi caminhar, deambular pela cidade, tirar umas fotos a Lisboa, passear, ouvir música, ler, esquecer que existia e quiçá passar um bom bocado.
9:30 da manhã, saí de casa, sem carro, apanhei o autocarro, rumo à Capital. Como não havia autocarro directo para o centro (Baixa), saí em Alcântara para a caminhada do Calvário até à Praça do Comércio. Passeio muito pouco típico, com aliás gosto de fazer. É bom saber que há coisas que não conhecemos e que estão ainda por descobrir. Vi prédios, casas, ruas largas, ruas estreitas e muito poucas pessoas. Não era de todo o meu intuito ver caras, figuras, senti-las, tinha mais a necessidade de sentir os sítios. Dois rolos de 32, um bloco e um livro seriam suficientes. Ângulos, formas de olhar, ver o que quase ninguém vê e pode não ser através da lente de uma câmara fotográfica, pode ser só com a alma, ou com o estado de espirito, o olhar que vê e diz mil palavras, não podendo ser ouvidas. Ao longo do passeio reparei que havia vários objectos que após serem recolhidos, podem ser analisados para futuras experiências da NASA. Há edifícios que falam connosco, pedem que os ajudem, outros que nos mandam dar uma curva e nos desprezam. A cada diapositivo projectado na minha retina, uma cantiga de cores suspirava ao meu ouvido, transmitia dor, ou alegria, tristeza ou gozo. Continuava a caminhava, sabia que só pararia quando chegasse. Passei Santos, caminhei quase sempre junto à 24 de Julho, via o Cais do Sodré e não queria lá chegar, mas não parava. Não sei porquê, mas todo o Cais do Sodré naquele dia parecia-me medonho, um local onde não queria estar, ou que ninguém devia estar. Quando lá cheguei, quase corri e só me apetecia gritar a todos quantos ali passavam para dali saírem, para fugirem, para escapulirem. Foi rápido, no entanto fiquei com saudades, mas não olhei para trás rumo aos passos do Concelho. Praça sem vida, sem cor, sem alma, sem nada. Todas as fotos que tirei a esta Praça saem sempre sem cor, menos sendo a preto e branco. Fazem lembrar as fotos tiradas na praia aos miúdos ao meio-dia. Eu explico; há som, há cor, mas depois de reveladas, nada...
Sorri mal cheguei à Praça do Comércio, como que se o ar do mar me tivesse entrado pela ventas e enchido os pulmões de Percebes, mesmo não havendo grande vento, mas o sol reflectido na pedra branca dava-lhe essa qualidade.
Segunda paragem.
Não escrevi nada, nem uma linha de jeito. Os sons, as cores, a excitação de andar, não deixavam sair palavras, só coisas parvas, rimas parvas, palavras parvas, tolas mesmo. Uma foto e zarpei. Estava na dúvida, no entanto a Rua Augusta é a minha eleita. Aí sim, caras, rostos e olhares. Não consegui definir o que via, só os via e não sentia nada. A cada passo mais me fazia confusão o não sentir as pessoas, como que se não estivessem lá, aliás, estão lá, mas não estão a sentir o que lhes aparece, ou o que miram, como se aquele local fosse um local qualquer. Desde logo abandonei as caras e passei de novo aos edifícios, em especial o topo. O que se passa no topo dos edifícios? Estão lá as coisas mais lindas, mais incríveis, mais fantásticas, e também as mais sem interesse que existe. É um misto de tudo e de nada. Desde a estátua, às cuecas de velha. Mas é claro que do nada pode-se transformar em tudo, o que interessa é o pormenor. Tolo, olho o topo dos edifícios, é como um vírus, que se propaga de uma forma demasiado rápida. As pessoas passam e olham também e como será óbvio referir, elas nada vêm, pois procuram desgraça alheia e eu, coisas bonitas. A fome apodera-se do meu estômago.
Terceira paragem.
Após um bom repasto e bem regado, nada melhor que subir a uma das 7 colinas. O sol convidava. Subi e subi, cheguei a um dos meus locais de eleição. Procurei um dos bancos de jardim, abri a mochila, tirei a música, liguei-a, sentei-me, mas sentei-me mesmo, tirei também o livro abri na página em que ia, li ao todo 10 linhas, deite-me no banco e adormeci. Há muitos, muitos anos que não dormia assim, senti que o meu corpo tivesse deixado a terra e passou a estar noutra dimensão, senti-me muito leve e tranquilo. Como quase todas as pessoas que sejam conscientes, haveria sempre o receio de perder tudo o que tinha e ser assaltado, pensei nisso quando acordei, mas de imediato passou-me, pois o sol dava-me na cara, enchendo-me de energia (mais ainda) para continuar. Levantei-me, assumi de novo a posição de sentado, li umas quantas páginas, mirei à minha volta, estava quase vazio o jardim. São horas das fotos da tarde. Água, sol, arvores, casas, edifícios, o rio. Ai o rio! Pensei que era aqui que queria viver e morrer. Há muito locais por esse mundo fora, mas este é de uma beleza incrível, não sendo nada de especial, torna tudo muito mais fabuloso. Ouvia os acordos de uma música que me faz sorrir e sorri. Verti uma pequena lágrima, doce e alegre. Sorri de novo. Senti-me em paz, respirei fundo, senti uma lufada de ar fresco, fechei os olhos, ouvi, senti e... a música acabou. Guardei o livro que jazia no meu colo, tirei a máquina e tudo me parecia lindo para fotografar. Deitei-me de novo no banco, a imagem era linda, uma, a água no bebedouro, outra, a vista, mais uma. Tudo, tudo era belo. Após uma última vista sobre aquela Lisboa, rumei a outras paragens. Tinha ainda muito que caminhar. Desci de novo á baixa, subi de novo, desta feita, à Graça.
Quarta paragem
Pedi uma bebida, e fiquei por ali, parado, sem pensar em nada, como que se estivesse hipnotizado. O pôr-do-sol era a razão. Dei-lhe um sorriso, disse-lhe até amanhã e ele foi-se. Arrepie-me, vesti a camisola, mas logo percebi que não era só frio, era a noite que lá vinha e eu ainda tinha outros sítios onde ir. Bebi outra bebida, tirei o bloco e escrevi. “Hoje é dia de esquecer...” Arranquei a página, amarrotei-a, pedi a conta e deixei a folha em cima da mesa. Era hora de descer pela encosta. Ainda pensei que podia ir ao Castelo mas a Avenida da Liberdade chamava-me e a noite vinha a passos largos. Quando cheguei ao Martim Moniz estava louco por comer um dos petiscos mais saborosos e mais simples da baixa. Um lombinho e uma imperial preta. Quanto mais pensava mais a saliva se acumulava. Pedi, esperei e ouvi as vozes à minha volta. As conversas são deliciosas naquele local. Servido o lombinho, provei cada dentada como sendo a última, como sendo a comida mais saborosa do universo, bem como a cerveja, tudo estava no lugar certo há hora certa. Comi e bebi, fiquei e esperei, respirei e ouvi. Sorria de vez em quando. Como são deliciosas, ignorantes e lascivas as conversas naquela local. É tão engraçado quando um homem diz qualquer coisa lasciva e depois olha em volta à procura de aprovação, ou desaprovação. Somos quase impelidos a concordar com o que o cavalheiro diz e abanamos a cabeça. Paguei e saí. A Avenida está ali a dois passos. Tinha que seguir. Senti o seu chamamento, era estranho. Parei na praça central dos Restauradores, coloquei a máquina a jeito, tirei algumas fotos à Avenida e a tudo o que nela sobe e desce, até ficar sem rolo. Senti uma enorme curiosidade em ver as fotos. Coloquei o rolo de emergência, ando sempre com um pequeno rolo de 12 para emergências. Fui descendo a rua. O Rossio iluminado é algo a não perder. A Rua do Oiro era outro dos locais que queria encontrar. O elevador de Santa Justa, outro. Estava feito, consegui as fotos que queria, estava na hora de saída nocturna. Subi a Rua do Carmo, o Chiado já tinha alguma agitação, parei no Camões e esperei. Esperei que chegasse alguém. Alguém… uma pessoa qualquer. Alguém!! Esperei mais um pouco, e outro tanto, mais um minuto, ninguém. Uma tristeza sepulcral abateu-se sobre mim. O sorriso de tarde deu lugar à raiva, à profunda tristeza, o querer desaparecer, fugir e não mais voltar. Saltei do banco e voei para dentro do Bairro Alto. Era o mote. Estava criado o estado de espirito para entrar. Corri um ou dois bares que normalmente costumo ir. Não é que sejam muito especiais, como aliás é apanágio do Bairro Alto, em que nada é especial, mas há muita gente que assim pensa, ou julga que sim. Uma coisa é certa, mais uma vez estava lá. Pedi quase sempre a mesma bebida e finalizei no Arroz Doce como de costume. Fiquei preocupado pois mais uma vez estava sozinho e não sóbrio. Parei um pouco com o Arroz Doce à minha frente e ouvi, escrevi e ri. Tenho esse texto algures, um dia quem sabe o revelo.
Encontrei um paralelismo inquietante entre o local do lombinho e as ruas do Bairro Alto. Fiquei contente e triste ao mesmo tempo.
Quinta paragem
Havia um último local, um derradeiro, o último. É um local onde me sinto bem, porque a música de vez em quando me agrada, no entanto foi o local onde já me senti pior na minha vida. Por isso é um local do amor e ódio, coisas que me atraem e mexem comigo. Depois de uma rápida descida e já “embalado”, bati à porta – Tudo bem Rui? – Cumprimentei à entrada. Estava relativamente vazio. Senti desde logo uma estranha sensação de inquietude, visto que tinha passado o dia todo a interiorizar. Dito e feito, a sensação de estar a ser olhado por todos, de estar a ser criticado por todos, fez-me sentir revoltado, angustiado. Acabei a minha bebida avidamente, disse até logo ao Rui e saí à pressa. Procurei o ar da noite, algo que tornasse a minha noite mais agradável. Procurei o rio, o consolo do rio. Hum! Tão bom... Sorri de novo. Já era tarde.
Sexta paragem
Esperei o autocarro, o frio e o sono começaram a apoderar-se de mim, resisti até à última réstia de energia. Finalmente chegou.
Entrei, paguei, sentei-me, pedi por tudo para chegar rápido a casa. À medida que passava por locais que tinha visto de manhã, comentava para mim: “Já passei por ali e a pé...”. Cheguei ao destino, muito, mas muito cansado. Saí e procurei chegar a casa o mais rápido possível. Os metros até casa pareceram horas, dias, semanas, quase em esforço. Abri a porta da rua, entrei, fechei a porta, atirei tudo para o chão, tirei a roupa toda, voei para a cama e descansei.
Final
Um último pensamento invadiu a minha cabeça, antes de dormir: “Tenho a boca colada de não falar, mas tenho a mente cansada de sentir. Até manhã” Sorri e dormi.
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CU menta!