Grovembeck, um amigo, um poeta,
daqueles de trazer por casa, alguém que não tem nada na manga, mas podia...
O melhor que há em cada um de nós, ele
conseguia trazer, no entanto duma forma neurótica, quase desapercebida. Ontem,
pela meia-noite encontrei-o descalço na cozinha do velho palacete, estando,
lá fora, na rua, uns doentios dez graus célticos negativos. O frio enrijecia
qualquer membro, ou tronco, do maior ser vivo, de sangue quente, à face
da terra. Descalço o apanhei e lhe perguntei qual a sua forma de entender todos
os problemas que o assolam. Não se fez rogado. Numa dialética muito branda e
curta, explicou que dentro de nós há alguma coisa que nos move e nos traz de
volta, mesmo quando partimos para partes esconsas, imiscuídas em brumas sombrias,
que nem luz, nem nada, mesmo a mais clara, as penetra. Mas eu julguei que todos
aqueles argumentos fossem deturpados pela vil sagacidade, que sempre o
acompanhara. Enquanto caminhávamos para a copa, notei que algo estava errado,
visto que o dreno que trazia, no braço direito, jorrava litros de líquidos, que
em nada eram semelhantes a vinho do Porto. Olhei-o nos olhos, agarrei algo
contundente, serrei os dentes e pensei que ia ser o meu fim. Mas não, ele
olhou-me com todo aquele sentido resplandecente de quem tem piedade e abriu uma
garrafa de Clicquot. Já na copa e por entre duas ou três palavras de encantar,
decantou o nectar, sem pestanejar. Suaves gotas do líquido gotejavam, sôfregas
de ar, como que morressem, numa anáfora de horror, senti cada gota que saía,
enclausuradas no vidro fosco, opaco, escuro, preservado pelo tempo, oculto pelo
deleite, como que fizessem parte de mim. De ar precisava e de ar iria morrer,
nas goelas de quem o quisesse beber. Não, era demasiado óbvio, tal personagem,
tal poeta, não detinha os poderes dum tal personagem de ficção romântica, tanto
mais que desdentado tinha ficado e a espondilose já há muito o tinha arruinado.
Sentou-se após a meticulosa tarefa, que desempenhou com mestria. Num movimento
subtil, mas ao mesmo tempo declarado, só igualado ao de quem defere uma
estocada, retirou do pequeno bolso da jaqueta, um minúsculo sino, fazendo-o
soar. Duas aias de vestidos brancos e longos, não demoraram a irromper.
Deslizaram; e, petrificaram-se junto a si. Balbuciaram duas ou três palavras em
dialetos desconhecidos. Todo o cenário me fazia transportar para um
festim medieval, de colher de pau e garfos de madeira, em que dentes afiados delongavam
tenras carnes, apodrecidas pelo tempo. Estendeu o vinho decantado a uma das
aias e a outra, um prato que jazia na mesa, coberto por comida brilhante.
Vindas de ambos os lados, as aias deslizantes, colocaram ambos os objectos na
minha frente. Olhou-me e disse:
- Comamos.
Pensei se devia, mas
a fome e o resplandecente do prato, mais o brilho dos archotes no vidro cristalino,
transformavam o nectar divino no líquido mais apetecido dos últimos séculos.
Primeiro, ergui o copo e lá do alto, olhando Grovembeck, esse meu bom velho
amigo, saudei-o. Fez o mesmo e disse, sem se levantar, que estava demasiado
velho para se erguer, mas mesmo assim saudou, efusivo. Olhei o copo. Não
conseguindo deixar de pensar no que iria beber, só mesmo que tinha laivos de
sangue de boi, mas com a luminosidade dum diamante em bruto. Os meus lábios
foram tocados por séculos de amadurecimento, por anos a fio de moléculas que
mesmo estáveis, o festim fazem, estando no entanto, aparentemente inertes. Correm
desenfreadamente, a cada 10, ou 5 anos, num tumulto digno duma revolução.
Humedecem cada greta, cada espaço seco, cada ínfimo lugar microscópico dos meus
lábios. De seguida, não conseguindo reter mais a vontade, abri a boca, ao
que o néctar deslizou por entre as pequenas montanhas da minha língua, num
frenesim assustador, tocou em todas as papilas gustativas e todas elas enrubesceram.
O meu coração por momentos parou. Um arrepio estrondoso preencheu as minhas
costas, membros e até mesmo todos os meus poros capilares. Cerrei os olhos e
disse:
- Amigo, agora posso morrer.
Govembeck, de olhos fechados,
fazia o mesmo, ou pelo menos assim o parecia, mas o inevitável tempo assim o
ditou. O meu caro e adorado amigo, finara-se, apagara-se, deixara de existir,
passara para uma nova etapa, morrera.
As aias, que estavam
ainda connosco, numa prontidão irascível, saíram, sem sequer dizer nada,
nem expressar qualquer tipo de suspiro, choro, decoro, sentimento algum...
nada. Fiquei em silêncio, durante o que pareciam anos, a olha-lo, a
admira-lo, sem qualquer tipo de pudor, senti-o dentro de mim. O seu corpo
inerte, vingava na minha alma, duma forma quase pornográfica invade o
meu ser. Quando não sentia os meus membros, por tanto estarem estáticos, fazia
pequenos movimentos, para que aos poucos conseguisse levantar o meu corpo, que
quanto mais tempo passava, mas pesado ficava. Assomei-me junto a ele em passos
vagarosos, sem ter a ousadia de tirar os meus olhos dos dele, que continuavam
cerrados mas pareciam plenamente abertos. Senti o frio da noite na ponta
dos meus dedos. Ao chegar junto a ele, toquei-lhe por fim na mão e senti o
calor gelado do amor, do fogo da paixão, os anos a fio me levaram até ele; e,
sem pensar duas vezes, beijei-lhe a face. Os meus dedos neste momento gelados
pelo querer, sentem os seus cabelos, o seu pescoço e deslizam pela sua pele,
sentindo-a, penetrando a densa roupagem que o cobre. Mais uma vez os meus
pensamentos divagaram para todos os momentos que já passara-mos, sem deixar
fugir um único segundo. Meio século de conhecimento, não são suficientes para
explicar o que sentia, para tentar saborear o que tanto ficara por dizer, por
explicar. O silêncio, que era interrompido pelas rajadas de vento que faziam
vibrar as janelas e portadas da imensa copa, parecendo quase um salão de
festas, devido à sua grutesca imensidão. Numa magistral sinfonia de
terror e paz, tais espaços, acompanhavam as minhas memórias. Numa vontade
infinita, num orgasmo mórbido, tentei chegar à sua morte. Arrastei a cadeira ainda
mais para junto dele, abeirando-me tão perto, que sentia o gelo do seu
corpo. Aconcheguei-me na cadeira, peguei na sua mão, bebi do seu vinho e fechei
os olhos procurando por algo que desconhecia. As velas extinguiam-se, a
luz ténue invadia o espaço, o cheiro a comida que esfriava, séculos de álcool evaporado,
mais os cheiros das madeiras velhas e novas, os incensos que pela casa se iam
consumindo, invadiam as minhas narinas. Todo aquele quadro parecia culminar
numa paz sem fim. Ouvia os sons já muito ao longe e senti medo, o frio medo de
nunca mais voltar. Senti saudades de estar vivo e abri os olhos. Tudo estava na
mesma, ele jazia, a luz cada vez mais ténue e o vento lá fora cada vez mais
forte. A lareira, ao fundo, coberta de cinzas, já só leves cores rubras
detinha. O frio, essa sensação de dor e doença, vinha em lufadas de ar
carregado de morte. Enchi o peito de ar gelado pelo tempo e tomei a decisão de
o levar comigo. Como o ia transportar sozinho? Chamei a plenos pulmões pelas
aias e a única coisa que consegui ouvir foi:
- Ó rapaz! Queres-me matar do
coração?!
Eu ainda envolto naquele ambiente
mórbido e pacífico, dei o salto da minha vida e estatelei-me no chão,
incrédulo. Govembeck não estava morto, só tinha tirado uns minutos para
descansar. Repus a minha compostura e afastei-me o mais que pude dele. Eu tinha
velado pela sua morte, tinha tentado estar ao lado dele, para onde ele tinha
ido, tinha chorado interiormente pela sua falta e numa mistura de alegria,
raiva e espanto, sorri. Ele arrastou a sua grande cadeira, ergueu o seu
longo corpo, olhou em volta procurando as aias e soltou um:
- Meu caro, está frio, vou
deitar. - Eu não sabia mais o que dizer e concordei.
Dei-lhe as boas noites e
sentei-me de novo na cadeira que me tinha sido encomendada. Ali fiquei. Ele,
arrastando-se, abriu a porta vagarosamente e antes de a fechar sobre si,
fitou-me e disse:
- Quando eu morrer, quero estar
sozinho. – E saiu.
As aias prontamente entraram no
salão e despiram todas as suas roupas. Em grupos de duas, esponjaram-se em cima
da mesa, em volúpia, os seus corpos se tocaram, num festim de orgia. Sim, eu
sei que era isto que gostavam que eu dissesse que se tinha passado, logo após a
saída do meu bom velho amigo, mas não, nada de passou, a não ser o facto de eu
ter saído, ter subido para os meus aposentos e sem sequer retirar a
roupa que trazia, afagando-me, deitei-me, sem conseguir abafar um suspiro de alívio
e de impotência.
Acordei cheio de frio e ao mesmo
tempo suado. Estranho, sem vontade de acordar, sem vontade de sequer
olhar, de abrir os olhos, sem vontade de nada, de ali ficar e de ali me apagar.
Voltei-me para o outro lado e continuei a dormir, pelo menos tentei. Lá
fora o vento não se sentia e o sol gritava por entre as frinchas das portadas.
Os longos cortinados de três camadas, não eram suficientes para suster a
claridade, que se fazia acompanhar pelo canto de mil aves. Como podia ser?
Estávamos no Inverno! Bateram à porta e sem sequer esperar pela minha
resposta, saltaram para dentro do meu quarto. Era um exército de anões que a
única coisa que traziam a cobrir os seus corpos, era uma fralda de pano,
amarrada por um alfinete de dama dourado, posto de lado. Fechei os olhos,
aguardei uns segundos e voltei a abrir. De facto era um sonho mau, pois o
quarto continuava escuro e o frio voltara a fazer-se sentir. Senti uma sede
infindável e procurei, por entre a escuridão, na mesa-de-cabeceira, pelo copo de
água. Uma mão estendeu o copo. Achei estranho, mas aceitei. Depois, ao
racionalizar a situação, dei um salto, deixam logo de imediato cair o copo na
roupa da cama. Procurei quem estaria no quarto, mas não enxergava nada, só um
vulto que se movia bruscamente. O pânico gelou-me a cara, fez o meu corpo
tremer, o medo de não saber quem seria, misturava-se com a derradeira sensação
de ser alguma coisa sem vida, que deambulava pela escuridão, que
atormenta o ser, vingando-se, apoderando-se de nós, uma alma penada;
e, este pensamento suplantou a racionalidade. Corri para as portadas, para
que a luz trouxesse vida aquela forma de vida. Abri e nada encontrei, só mesmo
o meu caro amigo a um canto, que ria em silêncio. Suspirei ainda em
sobressalto. Perguntei-lhe o que estava ali a fazer, o qual respondeu que
estava muito preocupado comigo, pois três meses a dormir, seria demais.
- Três meses? – Respondi.
- Sim meu caro, estiveste a
dormir três meses. Ou pelo menos assim parecia, visto que morto não estavas e a
tua respiração profunda, adivinhava um profundo sono.
- Mas como pode ser? Que dia é
hoje? De facto a luz é diferente e já se sente um pouco de calor.
- É normal meu caro, estamos na
Primavera…
- Como? Não pode ser… isso é
ilógico.
- Não sei, o que é facto, é
que durante esse tempo todo, a única coisa que se passou dentro deste quarto
foi uma festa de anões, que eu organizei, para dar algum alento ao teu quase
eterno sono. Pensei que podias estar doente e chamei o médico da aldeia.
- E estou? Aliás, estava?
- Não, não estás, mas também não
estás completamente bem, pois o teu coração não bate…
- Não? Mas… espera. Não o
sinto – disse eu, colocando a mão no peito.
- Vês? Pois, foi o que eu disse
ao médico, que não podia ser, mas de facto é isso que se passa contigo. Entraste
num sono profundo, que fez com que o teu coração não bata, mas todo o teu
corpo continua vivo, ou pelo menos assim parece.
- Mas meu amigo, isso é digno…
- Não digas, que nos podem ouvir.
- Como sabias o que ia dizer?
- Porque sei…
- Mas eu que te julgava morto, no
mesmo estado que eu, neste momento sou eu que estou assim e tu, tu como estás?
- Estou bem.
- Só isso?
- Sim… tenho passado os dias a
ler e a fazer planos para o Inverno.
- Porquê o Inverno?
- Porque não conheço outra
estação do ano.
- Mas… estamos na Primavera e
estás aqui.
- É raro, mas é verdade.
- Estás-me a deixar confuso.
- Há quantos anos nos conhecemos?
Cinquenta, certo?
- Sim, mais ou menos. Mas onde
queres chegar?
- Durante esse tempo todo,
quantas vezes estivemos juntos?
- Cerca de cinquenta…
- Nem mais. – Dizendo isso,
aproximou-se da luz. – Queres ver o que esta luz me faz?
- Dá luz… não?
- Não só, faz isto! – Estendeu o
braço nu e deixou que a luz percorre-se a sua pele. Não aconteceu nada
de surpreendente, só mesmo uma pequena fumaça que emanava dele.
- Vampiros? Estás a brincar,
certo?
Dando uma gargalhada, disse:
- Sim, estou a brincar, é só um
efeito especial que aprendi com o meu amigo dos filmes. – Dando de novo uma sagaz
gargalhada.
- Continuo sem saber o que se
passou… Três meses? Não pode Alfino! Não pode!
Abriu muito os olhos e disse:
- Não me trates por esse nome
aqui, as paredes têm ouvidos. Façamos o seguinte, levanta-te, tira as teias de
aranha do teu corpo e vem ter comigo lá a baixo à copa, deves estar
faminto.
- Sim, concordo. Já lá irei
ter.
Dizendo isto, saiu.
Estaria ainda a dormir? Seria um
sonho. Levantei-me e dirigi-me para a casa-de-banho que ficava numa divisão
contigua. Quando me abeirei do espelho, não me reconhecia, pois a barba era tão
longa e densa, que cobria quase toda a minha face. Não tinha forma de me
certificar se seria ou não, um sonho. Tudo parecia muito real e tudo me parecia
ainda mais irreal. Na minha cabeça replicavam duas palavras: Três meses.
Incrédulo, tomei banho, retirei a barba densa, cortei algumas pontas do cabelo
que pareciam estar apodrecidas pelo tempo, vesti-me e saí. Tudo estava
exactamente igual aquando do outro dia. Como podia ser? Tinham
passado, pelo que me tinha dito o meu caro amigo, noventa dias, os quais em
puro sono. A única coisa que tinha mudado, era de facto o calor, que por
esta altura recheava a casa, bem como o silvado dos pássaros e a luz, a imensa
luz que resplandecia por toda a casa. Desci a gigante escadaria, de mão cravada
no corrimão de pedra; e, em paços débeis cheguei ao patamar. Cheguei a pensar
que ia desfalecer, pois as poucas forças que me restavam, quase não eram
suficientes para me arrastar até à copa. Ainda me assolou um pensamento débil:
porque razão precisaria ele duma casa tão grande…? Por fim, cheguei. Na mesa,
de novo o vinho, os copos, a comida do outro dia, tudo tal e qual nos mesmos
sítios, da mesma forma. Ele, com um sorriso irónico, estava sentado no mesmo
sítio e para mim, reservado o mesmo lugar. As aias, nos mesmos sítios. Para além
da lareira apagada, a única coisa que diferia era a luz, pois estando as longas
portadas abertas de par em par, toda a luz preenchia na totalidade a
infindável divisão. Tão ridiculamente forte e intensa, que quase me
cegava. A fome fazia rugir todo o meu corpo e os meus olhos não abandonavam a
comida, de tão brilhante que estava. Pedi água, estava morto de sede.
Prontamente me encheram o copo. Ao lado, estava o vinho, o místico e mítico vinho,
exactamente como o tinha deixado, supostamente, há três meses atrás. Bebi a
água, pousei o copo vazio, peguei no copo de vinho, estupidamente brilhante, olhei
Govembeck e disse:
- Comamos.
Quando acordei estava muito frio
e as portadas, fechadas, batiam enraivecidas, assoladas pelo vento ciclónico de
norte…